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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Nuri Bilge Ceylan e o “retorno a certo tipo de cinema”.

Eis uma coisa que perdi com a maturidade: a coragem dos sentimentos.”
-Michelangelo Antonioni.

I



Sento-me na cadeira. O contexto em que vivo me autoriza assistir esse filme ou o monstro da minha subjetividade vai tomar o que é autoral no diretor? O foco, logo que os créditos passam, são duas faces tristes, paisagens desoladas, diálogos esparsos e sem fôlego, como a neve que cai trôpega sobre Istambul. Vejamos; é possível falar sobre imagens? Não me refiro a descrições literárias detalhadas, mas uma imagem num filme- ou no teatro, por exemplo- é antecipada e precede um contexto, uma narrativa. Aliás, debater imagem não seria uma espécie da violência do conceito, a usurpação dos sentimentos? Mas então teríamos o problema de que toda arte é agressão. Os festivais fazem a máquina andar, a indústria terceiriza a criação para nós assistirmos em nossas poltronas. Há grande interesse nesse filme de Ceylan porque, de alguma maneira, ele foi apadrinhado por Cannes e por outros festivais importantes em 2003, como o de Toronto- um carimbo mundial de circuitos “cult” praticamente não criticado. A ruína do cinema é proclamada há muito tempo, posso lembrar-me de No Decurso Do Tempo, de Wenders, já problematizando essa questão- Nuri Bilge surge, então, para formadores de opinião ao redor do mundo, como retorno a certo tipo de cinema (Antonioni? Tarkovsky?).

Mas retorno? Realmente? “Já estive aqui”, pensei, assim que nascem as primeiras cenas contemplativas, os diálogos secos, aquela banalização toda da “paisagem ser a projeção mental das personagens”- as influências estão implícitas, isso é um pouco óbvio e não intrinsecamente ruim. São sobreposições que envolvem belíssimas tomadas; uma natureza morta, um navio tombado na costa, carneiros correndo com pano de fundo uma montanha e um lago. E isso é tudo. O filme se constitui nas imagens como muletas para as pessoas quebrarem o silêncio (não um silêncio que diz algo, que insinua algo) soltando palavras que variarão de acordo com o problema que estejam vivendo- até aí tudo bem, tudo beleza, mas que raios essa beleza, um tipo de amor à melancolia, tem a ver com o objetivo estético que supomos seja o da Distância?

O problema- como já mencionei anteriormente- foi que, quando Distante entrou em circuito por aqui- ele já vinha com o carimbo de obra-prima da imprensa de Cannes, ou seja, esperávamos um grande filme que este nunca almejou ser. E como extinguir a expectativa quando se repara que há uma espécie de decepção pelo que “dizem ter sido” é impossível, fica a sensação de incompletude. Podemos entender como uma obra de formação, amadurecimento intelectual e profissional. Um universo fragmentado baseado na aproximação entre duas esferas solitárias exíguas, onde as reações são filmadas tão centradamente quanto às paisagens, paralisadas perante a falta de empatia- por condições de classe, composição intelectiva, localização física terrena.

Distante (Uzak, Turquia, 2003)
 Mas vamos lá. Não é como se Ceylan fosse desonesto, apenas fica óbvio que ele quer fazer o tipo de filme que adora ver- a câmera lenta, o silêncio triunfante, as paisagens como painéis incompletos, influência nítida do Tsai Ming, por exemplo. O enredo é simples; jovem desempregado abandona sua cidade natal rumo à Istambul, onde fica alojado com um reconhecido fotógrafo conterrâneo admirador de Tarkovsky, para procurar emprego e mandar dinheiro à sua família. Esse suposto auxílio maximiza a distância entre os dois. A ambiência então se torna desconfortante, e são nessas interações deslumbrantes visualmente, porém desconfortáveis cenicamente que podemos perceber todos os méritos e defeitos do filme- os diálogos mínimos que deveriam ser ainda menores (ou inexistentes) em certas cenas, mais prolongados e densos em outras. A crítica social da racionalização do desemprego, ou uma desapropriação desmedida da sensação empática pela catástrofe alheia, o perpetuamento da primeira pessoa, sempre reclusa em suas pornografias, seus materiais (aí entendam como bem quiserem, o feitiche-arte, o feitiche-paisagem-bonita), estamos mortos e nossos métodos são no fundo iguais. Não há escapatória da opressão pelo contexto social, pois os espaços íntimos já estão invadidos por monstros camuflados de conterrâneos, familiares- a mãe doente do fotógrafo- amigos interesseiros, mesmo estranhos no bar que incorporam a falta de oportunidades. Podemos associar isso, nitidamente, ao neorrealismo italiano, não pela linguagem, absolutamente não, mas por evidenciar a sistematização do desanimo pessoal- um dos problemas, no entanto, é que Ceylan nitidamente adota a forma de “cinema de arte” que não consegue situar essa banalização da derrota, e ao invés disso, opta por alusões metafísicas transcendentais que nada tem a ver com os protagonistas.

                                                                                                                                                               
O problema é que esse simplismo fica muito óbvio no esquema do roteiro, a relação entre as personagens torna-se batida, caindo em muitos lugares comuns- Ceylan agrada muito, e a interação entre ambientes-personagens parecem fazer tudo para agradar um público teoricamente mais seleto- mas que não se propõe ao desafio de ir às raízes mais profundas e ali lançar uma semente questionadora. Não há deslocamento enquanto arte e sim uma carnavalização do prestígio. São corpos que agonizam não dentro do ambiente em que se encontram, mas não consegue gritar dentro do filme. Estão paralisados pela falta de criatividade de Ceylan. Nos momentos em que tensões mais complicadas esboçam acontecer- culpa, ciúme, sexo- as personagens parecessem evitar a vida, o “modo estoico” não é de nenhuma maneira a intenção do filme, mas fica parecendo isso no fim das contas, pequenos elementos não denunciam a essências dos protagonistas, antes, revelam como a construção destes é incompleta. O que os cerca não é a falta de pudor individual, mas a falta de criatividade não no enredo, mas nos sintomas que os (dês) conectariam, tornando-os pessoas mais densas, desequilibradas, enfim, vulneráveis. Eles estão imóveis e assim parecem estar destinados a permanecer, nesse poço isolado cujas vidas foram dissolvidas, meros restos, súplicas para que nasça alguma vontade em seus corpos- primeiro temos a construção bem realizada deles, mas e depois? Quem é capaz conjecturar a problemática da ação, ou da falta desta, que seja? Em um mundo doente, eles recusam-se a ficar enfermos, porém não levam nada adiante, não solidificam vontades, e duvido que haja alguma vontade deles, realmente- a competência da filmagem de Ceylan, no entanto, exibe pequenas frestas para o acontecimento, há passagens em que a comédia alivia as coisas, nos lembrando de que há vida- o fotógrafo e seu filme pornô, o dialogo do trabalhador em um bar- são como oásis que surgem para lembrar de que o cinema de Ceylan não é horroroso, falta originalidade, ousadia temática, se ele quer tanto assim estar ao lado dos mestres (pelo menos na ambição esse filme não peca, mas quando a ambição é grande a obra tem que estar à altura de). Precisamos despertar. E questionar. As imagens de Ceylan não chegam nisso.


Os dois protagonistas, que pela maneira simples e a solidão em que se encontram, formam juntos a principal força do filme- mas Ceylan acaba utilizando ambos, às vezes, para seu estilo de cinema já estabelecido, provavelmente consultando pré-formulas- ou seja, nos momentos de maior intensidade, onde os dois poderiam contracenar de modo que a câmera também os tratasse como protagonistas (se nisso o roteiro ajuda, a fotografia peca). Numa das cenas finais, o operário deixa o maço cigarro para o fotógrafo, um sinal de como respectiva relação poderia ser melhor. O desejo de Ceylan foi exibir uma narrativa quietamente perturbadora- marcada pelas diferenças de classe, conhecimento, localização- e relacionar frestas que abrandariam tal convivência, assim como eles tem em comum a mesma cidade natal, os dois fumavam quando se reencontraram; o laço compartilhado que aviva a lembrança e abranda possíveis lembranças futuras. Sob um mundo de paisagens deslumbrantes, vagam dois homens perdidos, um pouco perturbados e muito infelizes, a simplicidade aqui não é estereotipada como trampolim para autoestima. Um realismo cruel quando nos damos conta de que não temos nada, e não somos bem-vindos em lugar algum.

II

Pode-se fazer a associação do nome do filme com a arte milenar, conhecida desde que a humanidade concede a si mesma essa nomeação, de narrar- ou seja, transmitir uma história a alguém, com o intento de compartilhar sensações, emoções e experiências. O foco em determinadas personagens, o enredo, a localização através da história- múltiplos elementos de diferentes importâncias que sinalizam um desfecho. O exercício de Ceylan é esse e aqui, expõe muito mais as pessoas de sua vasta paisagem cênica. Podemos encarar a madrugada que se passa durante a maioria da narração como elemento chave para as revelações daqueles homens tão nitidamente angustiados- mas eles não esquecem quem eles são; a hierarquia, mulheres; é impossível abraçar nossa fantasia, só queremos abraçá-la porque fomos constituídos assim. Então disfarçamos o passado, colocamos um véu em nossas memórias mais dolorosas, isso para conseguir seguir em frente- o título do filme resgata o laço inicial para sermos testemunhas da angústia daqueles indivíduos.

Era Uma Vez na Anatólia (Bir Zamanlar Anadolu'da,Turquia/Bósnia-Herzegovina, 2011)


Na narrativa das personagens está a força-motor também- o que a primeira vista parece um drama policial para encontrar o corpo do assassinado, se converge para uma interação entre os integrantes da polícia e também dos acusados do crime, pois não há as viradas de enredo típicas do gênero, e sim o foco está justamente no modo como as pessoas enquadradas falam sobre suas mazelas, filosofam, comem e contam piadas. A tendência à narrativa. Justamente por não querer se apegar tanto no “suspense” do drama, Ceylan deve ter dado esse nome ao filme, são pessoas que se reconhecem não só através da história vivida, mas parecem respirar pelo fato de ainda poderem conduzi-las a algum interlocutor- a referência a contos de fada pode ser justificada então, já que cada um convive com sua fábula. As imagens registradas são muito belas, e ao contrário de Distante, os atores apenas não a preenchem, em alguns ótimos momentos (na conversa entre o Motorista e o Doutor, por exemplo) o plano sequência registra o vento balançando o mato, enquanto reflexões surgem e o áudio não é sincronizado com a imagem que nos é transmitida, são momentos assim que nossa subjetividade é assaltada e colocada em cheque- ao contrário dos filmes de Clint Eastwood, a morte não surge de maneira devastadora, ela já é sumariamente dada e ignorada em certos aspectos (“quando achamos o corpo ganhamos mais [dinheiro]”, diz o motorista a certa altura), como se as pessoas estivessem tão afogadas em sua própria narrativa que não tem tempo para esse outro mistério.

Ai reside a grande virada do diretor, fazendo de Anatólia o ponto de bifurcação em sua obra, pois confere às personagens um vestígio de existência, (não a morbidez tórrida que contamina Distante, onde as personagens não tinham fôlego, o silêncio estava mais para uma “falta do que expressar” do que a expressão da incomunicabilidade), as pessoas trocam figurinhas porque é tudo o que restou na vida delas, a morte dada, então o que fazer a partir daí é uma questão respondida durante os cento e cinquenta minutos. Como criar afetos na vastidão do mundo? Como se livrar dos apegos antigos? Qual a importância do dialogo nesses ambientes esquizofrênicos, ameaçadores? Quais interações seguem apenas pré-conceitos? São questões que ecoam e tentam ser respondidas, não pelas falas “cultas”, mas pela atitude dos que preenchem o quadro. É uma aposta no contanto social que- ao mesmo tempo em que revela uma Distância entre as pessoas, o promotor que fica contornando a história do suicídio de sua mulher- aperfeiçoa a validade da existência. É uma obra que não ambiciona a compreensão, mas ela deixa marcas da influência que as narrativas podem ter; o caráter importantíssimo da oralidade, em meio a paisagens deslumbrantes- Ceylan desistiu de fetichizar personagens mortos-vivos, para inseri-los numa ambiência muito característica desde seu primeiro filme- a diferença agora é que seu cinema tem vida.

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