“Eis uma coisa que
perdi com a maturidade: a coragem dos sentimentos.”
-Michelangelo Antonioni.
I
Sento-me na cadeira. O contexto
em que vivo me autoriza assistir esse filme ou o monstro da minha subjetividade
vai tomar o que é autoral no diretor? O foco, logo que os créditos passam, são
duas faces tristes, paisagens desoladas, diálogos esparsos e sem fôlego, como a
neve que cai trôpega sobre Istambul. Vejamos; é possível falar sobre imagens?
Não me refiro a descrições literárias detalhadas, mas uma imagem num filme- ou
no teatro, por exemplo- é antecipada e precede um contexto, uma narrativa.
Aliás, debater imagem não seria uma espécie da violência do conceito, a
usurpação dos sentimentos? Mas então teríamos o problema de que toda arte é
agressão. Os festivais fazem a máquina andar, a indústria terceiriza a criação
para nós assistirmos em nossas poltronas. Há grande interesse nesse filme de Ceylan porque, de alguma maneira, ele
foi apadrinhado por Cannes e por outros festivais importantes em 2003, como o
de Toronto- um carimbo mundial de circuitos “cult” praticamente não criticado. A ruína do cinema é proclamada há
muito tempo, posso lembrar-me de No Decurso Do Tempo, de Wenders, já
problematizando essa questão- Nuri Bilge
surge, então, para formadores de opinião ao redor do mundo, como retorno a
certo tipo de cinema (Antonioni? Tarkovsky?).
Mas retorno? Realmente? “Já
estive aqui”, pensei, assim que nascem as primeiras cenas contemplativas, os
diálogos secos, aquela banalização toda da “paisagem ser a projeção mental das
personagens”- as influências estão implícitas, isso é um pouco óbvio e não
intrinsecamente ruim. São sobreposições que envolvem belíssimas tomadas; uma
natureza morta, um navio tombado na costa, carneiros correndo com pano de fundo
uma montanha e um lago. E isso é tudo. O filme se constitui nas imagens como
muletas para as pessoas quebrarem o silêncio (não um silêncio que diz algo, que
insinua algo) soltando palavras que variarão de acordo com o problema que
estejam vivendo- até aí tudo bem, tudo beleza, mas que raios essa beleza, um
tipo de amor à melancolia, tem a ver com o objetivo estético que supomos seja o
da Distância?
O problema- como já mencionei
anteriormente- foi que, quando Distante entrou em circuito por aqui- ele já
vinha com o carimbo de obra-prima da imprensa de Cannes, ou seja, esperávamos
um grande filme que este nunca almejou ser. E como extinguir a expectativa
quando se repara que há uma espécie de decepção pelo que “dizem ter sido” é
impossível, fica a sensação de incompletude. Podemos entender como uma obra de
formação, amadurecimento intelectual e profissional. Um universo fragmentado
baseado na aproximação entre duas esferas solitárias exíguas, onde as reações
são filmadas tão centradamente quanto às paisagens, paralisadas perante a falta
de empatia- por condições de classe, composição intelectiva, localização física
terrena.
Distante (Uzak,
Turquia, 2003)
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Mas vamos lá. Não é como se Ceylan fosse desonesto, apenas fica
óbvio que ele quer fazer o tipo de filme que adora ver- a câmera lenta, o
silêncio triunfante, as paisagens como painéis incompletos, influência nítida
do Tsai Ming, por exemplo. O enredo é
simples; jovem desempregado abandona sua cidade natal rumo à Istambul, onde
fica alojado com um reconhecido fotógrafo conterrâneo admirador de Tarkovsky, para procurar emprego e
mandar dinheiro à sua família. Esse suposto auxílio maximiza a distância entre
os dois. A ambiência então se torna desconfortante, e são nessas interações
deslumbrantes visualmente, porém desconfortáveis cenicamente que podemos
perceber todos os méritos e defeitos do filme- os diálogos mínimos que deveriam
ser ainda menores (ou inexistentes) em certas cenas, mais prolongados e densos
em outras. A crítica social da racionalização do desemprego, ou uma
desapropriação desmedida da sensação empática pela catástrofe alheia, o
perpetuamento da primeira pessoa, sempre reclusa em suas pornografias, seus
materiais (aí entendam como bem quiserem, o feitiche-arte,
o feitiche-paisagem-bonita), estamos
mortos e nossos métodos são no fundo iguais. Não há escapatória da opressão
pelo contexto social, pois os espaços íntimos já estão invadidos por monstros
camuflados de conterrâneos, familiares- a mãe doente do fotógrafo- amigos
interesseiros, mesmo estranhos no bar que incorporam a falta de oportunidades.
Podemos associar isso, nitidamente, ao neorrealismo italiano, não pela
linguagem, absolutamente não, mas por evidenciar a sistematização do desanimo
pessoal- um dos problemas, no entanto, é que Ceylan nitidamente adota a forma de “cinema de arte” que não
consegue situar essa banalização da derrota, e ao invés disso, opta por alusões
metafísicas transcendentais que nada tem a ver com os protagonistas.
O problema é
que esse simplismo fica muito óbvio no esquema do roteiro, a relação entre as
personagens torna-se batida, caindo em muitos lugares comuns- Ceylan agrada muito, e a interação entre
ambientes-personagens parecem fazer tudo para agradar um público teoricamente
mais seleto- mas que não se propõe ao desafio de ir às raízes mais profundas e
ali lançar uma semente questionadora. Não há deslocamento enquanto arte e sim
uma carnavalização do prestígio. São corpos que agonizam não dentro do ambiente
em que se encontram, mas não consegue gritar dentro do filme. Estão paralisados
pela falta de criatividade de Ceylan.
Nos momentos em que tensões mais complicadas esboçam acontecer- culpa, ciúme,
sexo- as personagens parecessem evitar a vida, o “modo estoico” não é de
nenhuma maneira a intenção do filme, mas fica parecendo isso no fim das contas,
pequenos elementos não denunciam a essências dos protagonistas, antes, revelam
como a construção destes é incompleta. O que os cerca não é a falta de pudor
individual, mas a falta de criatividade não no enredo, mas nos sintomas que os
(dês) conectariam, tornando-os pessoas mais densas, desequilibradas, enfim,
vulneráveis. Eles estão imóveis e assim parecem estar destinados a permanecer,
nesse poço isolado cujas vidas foram dissolvidas, meros restos, súplicas para
que nasça alguma vontade em seus corpos- primeiro temos a construção bem
realizada deles, mas e depois? Quem é capaz conjecturar a problemática da ação,
ou da falta desta, que seja? Em um mundo doente, eles recusam-se a ficar
enfermos, porém não levam nada adiante, não solidificam vontades, e duvido que
haja alguma vontade deles, realmente- a competência da filmagem de Ceylan, no entanto, exibe pequenas
frestas para o acontecimento, há passagens em que a comédia alivia as coisas,
nos lembrando de que há vida- o fotógrafo e seu filme pornô, o dialogo do
trabalhador em um bar- são como oásis que surgem para lembrar de que o cinema
de Ceylan não é horroroso, falta
originalidade, ousadia temática, se ele quer tanto assim estar ao lado dos
mestres (pelo menos na ambição esse filme não peca, mas quando a ambição é grande
a obra tem que estar à altura de). Precisamos despertar. E questionar. As
imagens de Ceylan não chegam nisso.
Os dois
protagonistas, que pela maneira simples e a solidão em que se encontram, formam
juntos a principal força do filme- mas Ceylan
acaba utilizando ambos, às vezes, para seu estilo de cinema já estabelecido,
provavelmente consultando pré-formulas- ou seja, nos momentos de maior
intensidade, onde os dois poderiam contracenar de modo que a câmera também os
tratasse como protagonistas (se nisso o roteiro ajuda, a fotografia peca). Numa
das cenas finais, o operário deixa o maço cigarro para o fotógrafo, um sinal de
como respectiva relação poderia ser melhor. O desejo de Ceylan foi exibir uma narrativa quietamente perturbadora- marcada
pelas diferenças de classe, conhecimento, localização- e relacionar frestas que
abrandariam tal convivência, assim como eles tem em comum a mesma cidade natal,
os dois fumavam quando se reencontraram; o laço compartilhado que aviva a
lembrança e abranda possíveis lembranças futuras. Sob um mundo de paisagens
deslumbrantes, vagam dois homens perdidos, um pouco perturbados e muito
infelizes, a simplicidade aqui não é estereotipada como trampolim para
autoestima. Um realismo cruel quando nos damos conta de que não temos nada, e
não somos bem-vindos em lugar algum.
II
Pode-se fazer
a associação do nome do filme com a arte milenar, conhecida desde que a
humanidade concede a si mesma essa nomeação, de narrar- ou seja, transmitir uma
história a alguém, com o intento de compartilhar sensações, emoções e
experiências. O foco em determinadas personagens, o enredo, a localização
através da história- múltiplos elementos de diferentes importâncias que
sinalizam um desfecho. O exercício de Ceylan
é esse e aqui, expõe muito mais as pessoas de sua vasta paisagem cênica.
Podemos encarar a madrugada que se passa durante a maioria da narração como
elemento chave para as revelações daqueles homens tão nitidamente angustiados-
mas eles não esquecem quem eles são; a hierarquia, mulheres; é impossível
abraçar nossa fantasia, só queremos abraçá-la porque fomos constituídos assim.
Então disfarçamos o passado, colocamos um véu em nossas memórias mais
dolorosas, isso para conseguir seguir em frente- o título do filme resgata o
laço inicial para sermos testemunhas da angústia daqueles indivíduos.
Era Uma Vez na Anatólia (Bir Zamanlar
Anadolu'da,Turquia/Bósnia-Herzegovina, 2011)
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Na narrativa
das personagens está a força-motor também- o que a primeira vista parece um
drama policial para encontrar o corpo do assassinado, se converge para uma
interação entre os integrantes da polícia e também dos acusados do crime, pois
não há as viradas de enredo típicas do gênero, e sim o foco está justamente no
modo como as pessoas enquadradas falam sobre suas mazelas, filosofam, comem e
contam piadas. A tendência à narrativa. Justamente por não querer se apegar
tanto no “suspense” do drama, Ceylan
deve ter dado esse nome ao filme, são pessoas que se reconhecem não só através
da história vivida, mas parecem respirar pelo fato de ainda poderem conduzi-las
a algum interlocutor- a referência a contos de fada pode ser justificada então,
já que cada um convive com sua fábula. As imagens registradas são muito belas,
e ao contrário de Distante, os atores apenas não a preenchem, em alguns ótimos
momentos (na conversa entre o Motorista e o Doutor, por exemplo) o plano
sequência registra o vento balançando o mato, enquanto reflexões surgem e o
áudio não é sincronizado com a imagem que nos é transmitida, são momentos assim
que nossa subjetividade é assaltada e colocada em cheque- ao contrário dos
filmes de Clint Eastwood, a morte não surge de maneira devastadora, ela já é
sumariamente dada e ignorada em certos aspectos (“quando achamos o corpo
ganhamos mais [dinheiro]”, diz o motorista a certa altura), como se as pessoas
estivessem tão afogadas em sua própria narrativa que não tem tempo para esse
outro mistério.
Ai reside a
grande virada do diretor, fazendo de Anatólia o ponto de bifurcação em sua
obra, pois confere às personagens um vestígio de existência, (não a morbidez
tórrida que contamina Distante, onde as personagens não tinham fôlego, o
silêncio estava mais para uma “falta do que expressar” do que a expressão da
incomunicabilidade), as pessoas trocam figurinhas porque é tudo o que restou na
vida delas, a morte dada, então o que fazer a partir daí é uma questão
respondida durante os cento e cinquenta minutos. Como criar afetos na vastidão
do mundo? Como se livrar dos apegos antigos? Qual a importância do dialogo
nesses ambientes esquizofrênicos, ameaçadores? Quais interações seguem apenas pré-conceitos?
São questões que ecoam e tentam ser respondidas, não pelas falas “cultas”, mas
pela atitude dos que preenchem o quadro. É uma aposta no contanto social que- ao
mesmo tempo em que revela uma Distância entre as pessoas, o promotor que fica
contornando a história do suicídio de sua mulher- aperfeiçoa a validade da
existência. É uma obra que não ambiciona a compreensão, mas ela deixa marcas da
influência que as narrativas podem ter; o caráter importantíssimo da oralidade,
em meio a paisagens deslumbrantes- Ceylan
desistiu de fetichizar personagens
mortos-vivos, para inseri-los numa ambiência muito característica desde seu
primeiro filme- a diferença agora é que seu cinema tem vida.
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