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domingo, 9 de dezembro de 2018

teoria dos cachorros

sérgio helle - acqua

Pitoco corria pelo corredor externo imprimindo o som das patas, batendo contra o piso, por dentro de toda a casa. Vivia tranquilamente, acompanhando com olhos -às vezes atentos, às vezes desinteressados- o movimento na rua, até que resolveu passar a latir cada vez mais raivoso, cada vez mais urgente; pelos eriçados e agudos contra um inimigo que não conseguíamos detectar. Um nervosismo súbito tomava o corpo e estendia-o a agir num nível paranoico com estranhas contrações. Rapidamente se acalmava e eu assistia àquela variação sempre com espanto, como se nascesse um novo cão a cada ataque e depois evaporasse, insuficiente à ideia de o corpo voltar a ser o que era.

Meu problema é que, naquela época, eu queria apreender essa variação através de palavras e, quando o acesso iniciava, eu mal começava a esboçá-las e aquilo terminava; o pouco anotado era claramente insuficiente para produzir alguma oração ou extrair qualquer imponência do quanto eu ficava espantado com aquilo; era impossível, para as folhas em branco, absorverem minha surpresa. Aquilo se transformou numa obsessão inexplicável de esperar o momento da possessão do Pitoco, para aparecer outro cachorro incorporado naquela corpo inconformado, para anotar aqueles rugidos altos e rápidos e provar que eu testemunhava algo incrível. Iniciava tão abruptamente quanto terminava, deixando um abismo de espanto que eu necessitava colocar em palavras, embora não soubesse como e sempre pareciam insuficientes.

Com o passar do tempo, a motivação de anotar o escândalo da possessão diminui e eu percebi que aquelas incorporações foram murchando até tornarem-se inexistentes, não restando no Pitoco qualquer resquício da violência anterior; ele voltou a caminhar com a elegância desleixada pelo corredor e passou a dormir horas a fio no meio do dia, levantando-se para assistir aos transeuntes ou fazer as necessidades. Depois, cansou-se no movimento da rua e ficava deitado comigo na sala, enquanto eu assistia à televisão ou lia.

Demorou para compreender que aquelas possessões era ele tentando ainda provar que podia ficar inconformado diante da aproximação da sua própria morte, que ocorreu numa noite quente de janeiro, deitado na sala, enquanto eu assistia à televisão.

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