“Suffering has been stronger than all other teaching, and has taught me to understand what your heart used to be. I have been bent and broken, but - I hope - into a better shape.”
― Charles Dickens, Great Expectations
Uma política reacionária se
insinua em todos os locais da dita criação artística. Os paradoxos políticos
não só apresentam a representação em complexos culturais quanto a própria ideia
de um "telespectador comum" contamina ambições criativas dos
criadores das séries de televisão (tem-se em mente que o leitor do respectivo
ensaio não cai na bobagem de examinar séries de televisão como uma suposta
"arte-menor"- termo este que, aliás, não faz sentido algum). David
Simon sabia que ele deveria mirar em um história profunda que contivesse, vá
lá, sua dose de entretenimento mas sem sacrificar a visceralidade que qualquer obra realista (vale frisar que The Wire também contém um magnífica
dimensão trágica) deveria abarcar pela natureza de seu gênero. A liberdade de
consumir, a liberdade de se entreter, a liberdade de criticar- ao criar sua
obra, Simon saiu deste círculo meramente reprodutivo para representar a
essência do problema (e suas inúmeras complexidades). Em uma época de
abstrações universais (falsamente reproduzidas) há de se compreender a
necessidade urgente de algo que pare de dissimular o real para dialogar
abertamente com seu sistema de valores, predominantemente,
democrático-capitalistas.
A aliança jornalismo-realismo
sempre foi marca primordial de todos os trabalhos anteriores de Simon. Este
trabalhou no mundialmente respeitado Baltimore Sun, cobrindo pequenas matérias
policiais que foram ganhando seu fascínio. Entusiasta da literatura de Dickens,
David Simon se apaixonou pelo modus operandi
da cidade de Baltimore e viu ali um potencial para explicitar grandes problemas
que assolam a sociedade norte-americana. Declara-se The Wire não como um fraco apontar de dedos, mas sim como a única
representação possível dos estados democráticos.
Este contexto violento e que
posiciona a crítica social em nuances dicotômicas necessita de uma declaração
que irrompa o mero modelo vigente ambíguo e cave na estrutura (socialdemocrata,
cristã, ocidental) uma raiz central da qual as subordinações humanas se ramificam.
Consequentemente e incumbido duma missão muito maior que o próprio jornal
Baltimore Sun, em 1991 Simon foi atrás dessa grande origem e lançou um livro de
mais de 600 páginas que viria, também, a se tornar sua primeira série
televisiva.
Ir contra a representação
ordinária e (quase) literalmente atravessar o "espectador-comum" é um
pensamento bem inquietante que Simon deixa evidente em todas suas entrevistas.
Ele, no entanto, ficou indiferente ao potencial televisivo (que prioritariamente
é entreter) e continuou buscando formas jornalísticas de denunciar todas as
nuances democráticas. Porque o papel normativo, mesmo que esboçando uma
problemática, ainda assim é reacionário. Foi necessário continuar na literatura
e investir noutro livro ,em 1997- desta vez em parceria com o detetive Ed
Burns.
"The corner — A year in the life of an inner-city neighbourhood"
evidenciou para todo um público a derrota que o sistema "guerra contra as
drogas" causa e consolidou uma das maiores manchas da sociedade democrata.
Não se trata de relativismo cultural, mas da derrocada intrínseca que um Estado
Democrata perversamente situa a certos setores de sua sociedade. Simon dizia
aos seus leitores os pontos reais em que a insanidade de outrem bifurca com o
caminho da "pessoa comum". A estrutura falida em si, no entanto, não
é capaz de entregar nenhuma espécie de verdade. A verdade das coisas deve ser
organizada ainda que em uma perspectiva caótica para evidenciar o mundo do
desamparo.
II - A consagração do
evento esquecido
"A realidade acontecendo"
imageticamente e com um sucesso de público considerável foi atrativo o
suficiente para David Simon e Ed Burns reverem respectivas posições sobre a
televisão. A contínua imposição do mercado abrira uma brecha para dois homens
apaixonados por suas profissões e, principalmente, por relatos que tentem
encontrar a condição humana no outro. Nascia uma das primeiras, senão a
primeira, série televisa capaz de causar uma ruptura no sistema da verdade e
não apenas representar uma estrutura capenga e sim ser a sumária voz do
desamparo. "The Wire" traz esta verdade recalcada, "The
Wire" é a consagração do evento esquecido.
A autenticidade de "Wire"
não se encontra apenas nas inovações narrativas, mas em ressignificar seu lugar
(Baltimore) com um discurso emergente. A série é uma militância sobre a
verdade, mais do que qualquer barata mediação "arte-espectador". Em
um tempo em que "militância" é confundida com idealismo arcaico, há o
fator determinante irrecusável de que este mesmo contramilitantismo é outro véu, outro mito. "The Wire"
alarga as contradições de policiais, bandidos, governantes, imprensa, entre
outros para operar como um potente soco que, novamente, atravesse os milhares
de lugares-comuns.
A totalidade planejada por Ed
Burns e David Simon precisa cirurgicamente (em formas de temporada, cada
temporada tem seu alvo específico sem jamais desistir de abordar a enorme teia
de acontecimentos que convergem no evento) o gigantesco painel em derrocada de
Baltimore. A militância da verdade em "The Wire" é um processo
corrosivo de apagar estigmas falsos para que os bandidos e policiais e crianças
de rua e moradores de rua e jornalistas investigativos reportem um desespero
humano, ainda que coberto de atitudes aparentemente vazias- por isso a ironia
gritante no protagonista da série, Jimmy McNulty-
interpretado em estado de graça por " Dominic West ".
A criação artística de ambos
idealizadores resiste enquanto mero panfleto e se transforma em militância
essencialmente na vasta galeria de personagens afundados na realidade que os cerca
e em si mesmos- produtos desta realidade, reféns dessa hostilidade. Não há,
então, como não ocorrer um espelhamento do telespectador nesta gama de
personagens que apesar de serem supostos mocinhos ou supostos bandidos estão
afundados na ilegitimidade da aparência. As posições paradoxais e justamente o
choque de respectivos posicionamentos estabelecem a brutal cidade de Baltimore.
Se, atualmente, é de comum acordo
que as melhores séries televisivas utilizam de técnicas sumariamente literárias
para uma ênfase tanto narrativa quanto dramática, "The Wire" foi um
das primeiras séries a usar vastos elementos clássicos para inovar em um drama
na televisão. Sabendo que imposturas policiais tornariam a série uma ilusão,
Simon deu uma cadência extremamente lenta para uma narrativa policial pois,
acima de tudo, "The Wire" é um retrato avassalador tanto de suas
personagens quanto de Baltimore. No entanto, é através deste desespero que um
movimento autêntico ganha vida. No fim, "The Wire" é sobre uma
tentativa de acessar o outro, de ultrapassar o terreno neutro medíocre ao qual
o humano está submetido.
III - A luta essencial
No entanto, o uso de Baltimore
como plano de fundo e sua imersão constante enquanto cidade-protagonista não irresponsabiliza a corrosão que o
próprio humano submete outro semelhante. Ainda assim, a desumanização constante
se tornou palavra principal em diálogos secos- não à toa, qualquer morte
"importante" na série é mostrada indiretamente. Saber devolver a
importância (ou buscá-la, mesmo que erroneamente) de uma vida à palavra parece
a missão principal de David Simon.
O que Simon e Burns quiseram enfatizar é que o idioma
está morto em meio aos detritos sociais. Mas se isso ecoa como mito, o eco
ainda pode acender algo. Desta maneira, frequentar o mesmo eventos repetidas
vezes ao mesmo tempo tem o poder de tirar a empatia de qualquer ser humano, é o
único aspecto que pode devolvê-la. É verdade que o acesso parece estar
interrompido por instituições que veem o mercado (o de drogas, o político, etc)
como máquina de acesso às estruturas que regem vida sem parecer se importar
muito com ela.
Talvez, hoje em dia, é necessário
uma busca pelo perdido, pela "realidade mística" que o detetive McNulty empreende objetivamente
revirando a cidade em busca de uma Justiça que sempre que está perto é
arremessada para além dos prédios verticais da cidade pelas instituições, pelo
tráfico, pelo poder público- enfim, pelo descaso materializado, calculado,
automático. De qualquer forma, é uma luta que Simon e Burns julgam essencial.
IV - A busca perdida
A transmissão de
"Wire", a busca pelo que se perdeu no instituído:
Não é fácil transportar o terror
diário e cotidiano de Baltimore de maneira trágica, inevitavelmente romantizada
para a forma fictícia. Além do mais, é mais difícil ainda empreender qualquer
espécie de jornada em um sistema que categoricamente deixa o ser humano com a
sensação plena de impotência.
Simon e Burns, com certeza,
gostariam de redescobrir a potência do indivíduo enquanto agente ativo no caos
social. E eles gostaram de empreender esta busca examinando as complexidades
que bloqueiam o acesso ao elemento-humano. Finalmente, eles dizem através de
suas personagens: há algo claro e evidente e eu tenho que chegar nisso. Eu
tenho que ser o agente transformador e organizar o caos em um sistema
entrópico. Nos termos dos criadores, do caos e do desespero reside uma
substância essencial que transforma o indivíduo e seu ecossistema social.
O evento nasce quando o humano se
dá conta de sua condição e aceita as disparidades como fatores fenomenológicos
e, por tanto, transformáveis. O elemento-social não é uma realidade perpétua.
Há a indignação, há o frenesi- armas tão afirmativas como o caos. Em outras
palavras: a condição caótica pode sempre ser combatida.
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