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terça-feira, 7 de julho de 2015

Tsai-Ming-Liang - Jornada ao Oeste (Xi You) - (Taiwan/França, 2014)



Poucas cinematografias oferecem uma posição tão radical e leal quanto à de Tsai Ming-liang, cujas obras cronicamente estabelecem um acordo muito elevado com a audiência. A temporalidade é um aspecto fundamental nesse lugar que o diretor busca nos imergir. Assim que o filme inicia, o close em Denis Levant se aproxima muito a uma dinâmica documental em que se filma a biologia de determinada região. Assume-se, assim, que estamos sendo conduzidos a outro espaço com outras medidas temporais. Desde o começo do plano, a face de Levant se apresenta com uma história já contada- portanto, não haverá narrativas propriamente ditas em Jornada Ao Oeste, Tsai se cansou delas (aspecto que já se destacava em Cães Errantes). Alguém poderia questionar se “contemplar também não é narrar”, mas aqui vemos a exclusão de Denis quase em uma acepção que foge a história cronológica, afinal o Cinema só não existe para escapar do monstro histórico? O contemporâneo já esta inflado dessa medida corrosiva, o tempo. A incursão no rosto de Denis Levant condiciona a própria existência do filme para algo exclusivo, que só vai de fato ocorrer naquele ambiente. O que emerge do quadro que abre Jornada Ao Oeste é a utilização da ferramenta mais utilizada no cinema (o close) para demolir uma medida que essa mesma arte viu como sua muleta (principalmente em filmes mais “literários”).

A manipulação de Ming-liang é bem clara desde os primeiros instantes- como as sombras revelam o objeto (o rosto sufocado de Levant) e como a rotação transparece que o ator estava, na verdade, em um local aberto (a própria sombra que escurecia o rosto dava a impressão de um lugar fechado). O que predomina dessa operação é o elemento “momento”- sensação que só aumenta nas longas tomadas do filme. Somos atravessados por essa profundidade- de que, de fato, um momento está sendo fabricado. Não é o contexto que está sendo estabelecido! É o próprio tempo! É uma relação complexa entre objetos (atores, filme) e quem objetifica (audiência).

Não o suficiente, é o único instante em que Denis está em um mundo “não social” no filme, sua criação (a solidão) é impossível de ser repetida. Depois dessa sequência (que acaba numa curiosa corelação entre rosto e contorno das montanhas), Tsai abandona o impacto desse close para investigar o social. O que ele filma aqui está longe de ser um objeto narrado, mas o desenvolvimento das fronteiras contemporâneas, limitando-nos em espaços urbanos.

Barthes falava na função fetichista do cinema, sobre o vício no que “excede” a tela- o som, a escuridão, a massa obscura. Goodbye, Dragon Inn (2003) já mostrava um Tsai Ming-liang preocupado em problematizar a relação entre público e filme. Se Jornada Ao Oeste pode ser visto como a continuação do monge que estrelava Walker (2012), ambos carregam o fardo de ter que verdadeiramente “atravessar” os planos urbanos que parecem intransponíveis. O contraste notável em Walker, a imposição do ritmo de uma grande cidade, passa a ser negado quando a transição Oriente-Ocidente passa a ser acreditada como possível pelo próprio Denis Levant, que abrigava uma solidão angustiante na primeira tomada. Os passos de Lee Kang-sheng como monge só podem ser acreditados se contemplados com fé.


O universo de ambos protagonistas, no entanto, guarda similaridades muito grandes- a respiração de Levant emite um som muito parecido com o “ronco” da caverna onde a jornada de Lee se inicia. Então, a primeira cena de Levant e a primeira cena de Lee podem ser encaradas como uma espécie de preparação- o monge vai de fato “adentrar” no mundo onde sua presença causa impacto - este que se destaca mais no plano da escada- e Levant para ser “impactado”. Enquanto essa comunhão não ocorre, Tsai filma o rosto de Levant como um bioma. A câmera que acompanha o monge realiza a transição entre teoria e prática, enquanto Lee abandona lentamente a caverna escura. Mas aqui a ideia platônica não é sequer concebível- o ser abandona a caverna a partir do seu ato de fé, pois a projeção não vem mais das sombras, mas da realidade concreta cuja qual somos submetidos. A distância da câmera (em contraponto ao close máximo do primeiro plano) sustenta essa dialética para depois levantar outras questões.

“Mas se a dialética já é abandonada nessa segunda cena, o que resta?”. Voltamos ao cotidiano que é a matéria principal em toda filmografia de Tsai Ming-lian em que o monge (na linda caminhada inicial, o vermelho barroso do fundo contrapondo com o vermelho liso de Lee) vai adentrar o que muitos chamam de “mundo de verdade”. Os locais por onde o monge caminha é estetizado numa geometria obcecada de Ming-lian. Planos em que a posição da câmera se mostra fundamental para “construir” espaços e situações. A aleatoriedade é algo que Tsai não quer falsear, mas ele quer deixar-nos ciente de que, em um filme, pode “tapear” absolutamente tudo. É possível que os “pedestres” que “interferem” em nossa visão clara do ambiente urbano sejam mais que isso- são forças ativas que objetivamente excluem atos como o de Lee para um plano impossível.

O primeiro plano se caracteriza como essencial, pois sua solidão é o que permite uma contemplação mais comprometida com os atos do monge. Um sentido que não é possível catalogar que atinge peculiaridades como a menina da escada, Levant e que deveria guiar também os espectadores- que tempo e espaço não só coexistem como são a mesma estrutura e sua existência deve ser experimentada com o mesmo comprometimento. O tempo “já existiu” e no budismo ele não é algo além do que existe. Nada passa, a linearidade é também uma manipulação. É isso que Levant descobre- que as ações de causa e consequência não habitam nossa medida temporal. Filmar os passos do monge é também filmar a transformação no espaço. Levant vê que o monge só existe porque existe a cidade, Levant percebe essa interdependência tão cara para a filosofia zen-budista. Cada passo do monge é uma inauguração, é um gesto novo. O movimento do monge é sua forma de se integrar e viver o espaço- ser o espaço, de uma forma mais radical. Filmar a cidade é mostrar que ela ainda está aberta a integração. Essa atividade comum humana adquire uma força transcendental. Ora, a cidade pode ser modificada, observem as expressões da menina que não quer abandonar os passos de Lee! O milagre da liberdade começa quando Lee abandona a tela. Levant tem que continuar. O telespectador também.


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