@M tinha feito algo errado mas ela pensou que mal que tem
isso porque todo mundo faz algo errado de vez em quando. @M pensava nisso
mexendo incansavelmente nos seus óculos, como se a obsessão de seus dedos pelo
tato fosse uma ação capaz de reverter as besteiras, o álcool ou devolver
qualquer inocência. Isso de "eu perdi" minha inocência sempre foi
como uma desculpa da mente para dizer como sucumbimos às fraquezas. Nossos demônios
são poderosos demais; eles nos controlam e dentro dessa mente fechada são eles
que fodem tudo. Mais fácil falar que um demônio invisível fode tudo.
"Por que você sumiu", @M lixava a unha. De novo a
obsessão do tato. Tocar a carne. Tocar um objeto. Qualquer coisa que afirme a
mortalidade. Qualquer coisa que mostre a indiferença. Que mostre que há algo
mais forte do que nossas fraquezas. Que mostre que nossas fraquezas são nulas
sob qualquer observação de um plano supostamente superior. Um ponto de vista em
que o pensamento, a cisma, a insistência e a imaginação humana não podem
acessar. Nem conseguem. Um ponto que é Deus. Um invisível em que tudo possa ser
transferido. Descarregado.
"Eu parti por sua causa" Carol estava de pé
testemunhando tamanho desdém. Aff. Ela, a outra, lixando as unhas. Aff. Carol
não conseguia comunicar, no entanto, essa insatisfação ao ponto em que @M (que
para efeito de proteção à intimidade prefere não ter seu nome revelado) queria
encontrar aguma abertura para pedir desculpas.Carol encheu seu copo com um
vinho doce demais qualquer. @M, sentada, levantou o olhar e tentou achar a
brecha antes procurada no olhar da amiga. Ou ex amiga. Esta no entanto apenas
enchia o copo à medida que nenhum contato real entre as duas acontecia. Os
objetos (a lixa, o copo de vidro) eram pretextos para o bloqueio. Mas quem iria
saber. Carol bebeu de uma só vez e colocou o objeto na mesa e fez barulho e o
barulho incomodou @M que levantou de sua cadeira e disse muito nervosa ou
melhor ela não disse ela gritou porque talvez só um grito atravessasse o campo
de bloqueio entre as duas. Mas só talvez.
"EU FIZ TUDO ERRADO EU SEI MAS EU NÃO QUERIA SER TÃO
MAL EU NÃO QUERIA SEMPRE FODER TUDO EU QUERIA QUANDO AS COISAS ACONTECESSEM
FICAR PRESA NO MEU ÓDIO E NESTE ÓDIO FICAR ME INFLANDO ATÉ ACABAR COM TUDO
NESSA PORRA". E se numa lei maluca as boas ações de @M conseguissem bancar
suas ~supostas~ cagadas e ela tivesse que fazer um inventário extenso dessas
qualidades e tivesse também que pesar tudo numa balança meramente abstrata. De
repente daria certo. Mas Carol não iria querer saber disso. Você, no lugar dela,
também não. Acredite.
"A questão é M____ que você poderia ter mudado toda
essa história porque se realmente fossemos amigas você não teria mentido para
mim e feito o que fez", Carol tentava manter qualquer suposta calma mas
suas irritação era evidente. De maneira que a abertura dessa evidência deixou
@M menos pressionada e menos disposta a repetir berros. Tentar se controlar.
Essas coisas.
"Mas a gente sempre volta pra esses jogos e perece que
essa relação nossa é baseada num loop infinito de trocas de ofensas e ver quem
ganha o quê", a lixa de unha já estava no chão e talvez fosse melhor para
o relacionamento de ambas se @M sentasse ou se Carol não ousasse beber (de uma
vez só!) outro copo de vinho. Ambas interpretavam um papel (lhes designado pela
mente ou qualquer atribuição da consciência de que é necessário se relacionar
com alguém [é realmente necessário?]).
A dissimulação é incondicional. Mas como transformar
dissimulação em amor e se este amor de fato existe (como nós preferimos
acreditar que, sim, existe) como ele volta a ser amor depois que se transformou
em uma série de atos violentos, escandalosos, subordinadamente histriônicos.
Aquela era a realidade crua. Carol alcoolizada. Um depósito de mágoas (muito
bem justificáveis, vale lembrar). @M tentando consertar tudo e fazendo tudo
errado. Dois movimentos que se afastavam.
dandelion hands - it's all in your head |
As luzes mercuriais noturnas emitidas pelos postes fixos na
rua inundavam as lentes grossas do óculos de @M. Aquela conversa não havia construído
nada de bom. Críticas levadas, berros, acusações, "eu te desculpo's"
realmente não ocupados e honestidade cínica.
Enquanto Carol estava morando em outra cidade @M tinha
passado por um bocado de coisas e ficou com medo de ligar dizendo coisas como
"eu sinto sua falta" porque ela não queria não apenas não soar boba e
criança como talvez quem sabe é só uma suposição admitir para si mesma que
precisava mais de Carol do que pensava.
Passando pela esquina em que as duas ficavam fazendo planos
para um amanhã muito distante - que chegou na forma de brigas domésticas e
antigos rancores cultivados muito bem obrigado sob o frio invernal- @M se
lembrou do primeiro beijo de boca que deu e se lembrou que Carol apresentou o
menino. Ela estava envergonhada (ela demorou muito tempo para parar de ficar incomodada
por usar lentes tão grossas que aprofundavam a densidade dos seus olhos). O
beijo foi ok. mas o que ela mais guardava daquilo tudo era Carol ter ajeitado
todo o esquema para ela. Carol agora que se dirigia em sentido oposto e não
lembrava de ter organizado porra de beijo nenhum e nem sequer conseguia pensar
em muita coisa. Muito álcool. Mas nisso Carol era diferente. Quando ela bebia
muito (como naquela noite!) ela não ficava agressiva tal como @M (que,
lembrando, pediu para não ter seu nome revelado). Carol estava vermelha e @M estava
com saudades de certa época. Ambas por caminhos diferentes e caminhando na rua
em que elas cresceram e se tornaram o que são se bem que naquele exato instante
elas não eram muita coisa. @M p/ex. sentia que poderia ser dissolvida ali
naquele tempo interiorana. Quando pequenas, ambas ficavam olhando as estrelas -
sentadas em frente ao muro da casa dos pais de @M- fazendo projeções que,
claro, como tudo que nós projetamos, iriam tombar e falhar e imprimir o
fracasso na face delas. A bem da verdade, @M carregava uma impressão mais
nítida desse fracaso. Impressão esta que gera não só distúrbios nela (quem dera
fosse assim!) como nas pessoas ao seu redor ao ponto em que todos se distanciavam
e silenciosamente @M sabia que isso era tudo sua culpa mas ai que tá. O
problema de saber-se culpado nunca auxiliou ninguém a encontrar a origem desta
culpa pois assim todos que sentem-se culpados rapidamente não teriam motivo
para tal. Então para quem se sente realmente culpado talvez a morte fosse a
única absolvição e @M pensou seriamente nisso e pensou no suicídio como se
pensa em coisas p/ex. como o ar. Ou seja; abstratas mas palpáveis.
Costumava ser apenas as duas correndo por estas ruas e
correndo de suas mães e correndo atrás de diversão e ocasionalmente correndo
atrás de ajuda uma da outra. Parceria. Aparentemente indestrutível.
Carol se foi e @M sentiu-se desamparada e uma angústia
diária rotineira crescia nela sem ela saber exatamente o por quê. Mas ela
prosseguia porque inevitavelmente só dá para prosseguir.
A distância é uma droga perigosa.
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