Na obra das cantoras, o lugar do compartilhamento é uma constante busca por sentido.
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Dragon New Warm Mountain I Believe In You by Big Thief |
“As memórias, mesmo as mais preciosas, desaparecem com uma rapidez surpreendente. Mas eu não concordo com isso. As memórias que mais valorizo, nunca as vejo desaparecendo".
― Kazuo Ishiguro.
Lana Del Rey faz parte de um desfiladeiro que desabriga certo conforto do que se espera da música pop e reveste as coisas que temos como banais e supérfluas - as house parties, o Bacardi, as compras (quando ela compra um caminhão por puro tédio em Bartender) - com uma projeção de quem sempre retorna com uma sombra. Nada mais são do que passos de um mesmo mundo que abriga pílulas que se pararem de funcionar desalojam certo tipo de existência. Na verdade, encontrar sentido no meio dessa oferta tem sido o foco de seus álbuns, pelo menos, desde Norman Fucking Rockwell (2019).
Esta é a verdadeira razão de as cores em suas músicas estarem associadas a experiências de dependência; a multiplicidade não liberta, pois ela é um processo que tem a si como fim. A estrutura das canções fragilmente desaparece, gradualmente se decompondo em sons de um único instrumento que resiste à harmonia dos arranjos para terminar sozinho.
Apesar de circular por outro espectro de elaboração melódica, Ichiko Aoba enche suas cores com uma perambulação parecida; a revelação do sangue infesta cores que antes pareciam pálidas. Ela percebe a existência de pragas e coloca inúmeros "apesares" em suas canções para a tentativa de criar um caminho que seja capaz de anular, ainda que temporariamente, a contemplação abatida de um horizonte incolor.
Grande concha
A própria Aoba revela a existência de uma concha (e podemos entender por concha qualquer meio ecossistêmico que nos presenteie com uma falsa sensação de segurança) que é muito difícil de abandonar. É difícil destruir parte de sua estrutura para criar novos laços que não reabram as feridas anteriores. As carências por um passado impossível ainda nos perseguem e, às vezes, somos tão reféns delas que a concha parece se confundir com nosso coração. É de se notar que Lana Del Rey ouve coisas tão díspares dentro de uma mesma melodia e consegue perceber a infiltração da própria prisão em objetos exteriores como bebidas (que em breve passa a compor seu líquido intestinal), automóveis e remédios.
De certa maneira, Natalie Mering (Weyes Blood) consegue saber também tão pouco sobre a direção à qual estamos indo. Contudo, ela admite que há uma busca por amor como uma ação universal que faz a ligação entre cérebro e sistema nervoso, apesar de estarmos procurando nos lugares errados (as pílulas da Lana, o passado impossível de Aoba). Ao contrário de uma busca insensível por prazer instantâneo, a ideia de amor se plastificou somente nesses prazeres. Geralmente, Adrianne Lenker (que tem projeto solo e é vocalista no Big Thief) tenta contar como personifica o passado impossível em objetos concretos (argila, por exemplo) para, então, eles serem algo materialmente superáveis. Lenker acredita, sim, ser possível ver através desses objetos, pois apesar da concha estar em nosso coração, ela não precisa ocupar todo o espaço que cultivamos para nutrir afetos. Há muito a se construir.
Foi assim que Lenker escreveu Dragon New Warm Mountain I Believe In You (2022): a existência de uma criatura mágica que inunda um mundo de sentido apesar desse universo frígido. Ela materializa algo em tese inexistente para afirmar a crença em uma superação filtrada por seus traumas pessoais.
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And In The Darkness, Hearts Aglow by Weyes Blood |
A chama derradeira
Natalie Mering leva ao extremo suas tentativas árduas de esconder a dor. As regras de vivência e os códigos sociais e as postagens no Instagram parecem fazer da dor algo impossível. Algo descartável. Algo que não filtra nossas experiências e recondiciona nosso olhar para a beleza. No caso de forwards beckon rebound, Adrianne Lenker cria algo edificante e motivador. Parece um reconhecimento de uma parte muito falha da humanidade. Como se houvesse ambos os lados, a sombra e a luz, convivendo em uma dolorosa aceitação do que significa ser humano. É por esse motivo que esquecemos do outro lado quando nos envolvemos em determinado voo, porque o contexto nos possui e aniquilamos a possibilidade de invasão alheia. Estamos fechados para o outro (e é muito frustrante e ególatra só estar aberto para o que é uma manifestação de você). Nunca poderíamos construir nada com essas vivências, nem poderíamos chamar de existência um projeto de vida que foi determinado por um modelo prévio. Para construir qualquer coisa nessa mundo fragmentado é preciso sentido para erguer pontes em um cotidiano brutalizado.
Neste aspecto, Lenker se aproveita da passagem temporária para se ancorar nos toques afetivos talvez como única bússola emotiva neste universo. Ela praticamente apela para qualquer coisa (os sinais de internet, por exemplo) para sentir o toque da pessoa que ama.
É com essa ambiguidade de dependência emocional e estar aberta para o outro que seu Yin Yang se constrói. A permanência se transforma em uma instabilidade dilacerada. Encarar a multidão é enfrentar as partes esquecidas e tentar se conectar afetivamente é ceder espaço para que sua concha não se esqueça de você.
Filhas do Império
No fundo, cada uma das cantoras procura por seus céus claros após uma tormenta, enquanto aguardam outras. A intersecção de um mundo vindouro em que as feridas não façam as novas possibilidades sucumbirem.
A fusão de esperança com perigo leva Lana Del Rey a um impasse. Como parar de se identificar com as paranoias que sua própria cabeça produz? Para isso ela convoca os sorrisos (que às vezes são verdadeiros), os vestidos rosas e os iates brancos. Usa referências literárias (Sylvia Plath) em mesmas sentenças que os itens de luxo constrói uma paisagem que não intenciona ser tão abundante como parece, mas fruto de um mesmo desespero em tentar assimilar os objetos do mundo com um propósito. O melhor exemplo está em happiness is a butterfly. Trata-se de uma canção que menciona icônicas paisagens estadunidenses, o desejo de dançar e sua insegurança quanto ao parceiro romântico. Assim como Lenker, ela está com receio de que sua necessidade de afeto se transforme em dependência emocional. Aliás, para ambas, esse mundo em potencial harmonia está sempre a uma rejeição de se esfacelar. Afinal, elas são agentes que perpetuam a exaustiva aptidão humana para o desgaste e também pedem ajudar para morrer.
Fronteira para o medo
O uso de pedidos de ajuda nos álbuns das artistas mostra que elas sabem que sozinhas não podem firmar um sentido indissolúvel. Elas pedem ajuda para recordar o passado, embora isso não seja tão fácil quanto se pode supor, pois em nossa comunidade o passado é raramente discutido. Assim como no romance O Gigante Enterrado, de Kazuo Ishiguro, "ele [o passado] havia de algum modo sumido em meio a uma névoa tão densa quanto a que cobria os pântanos. Simplesmente não ocorria àqueles aldeões pensar sobre o passado — nem mesmo o recente". Isso significa que o medo universal de discutir o passado é proposto como uma intimidade que constantemente reconfigura seus modelos de afetos para tentar inaugurar momentos menos exaustivos.
Talvez o importante seja mesmo brilhar como os raios que resplandecem na superfície metálica de uma espingarda. Viver nas memórias dos últimos toques enquanto âncora de uma realidade. Esperar o wifi enquanto rolamos a tela do celular aguardando qualquer manifestação que nos tire dessa passividade. A terrível visão da própria sombra provoca a insuficiência de não podermos bloquear o sol durante todo o dia. Com Grapevine, Natalie Mering encontra diversas miniaturas que têm o poder de levar o nosso amor embora. Depois de se sentir sequestrada, o que vem é uma crença de que nada mais importa. E, claro, não é fácil para Lana Del Rey ser uma das garotas do cânion, mas não há problema em ser qualquer pessoa, contanto que essa personificação nos segure aqui.