I - Alienação
The Leftovers é melhor vista, talvez, se tomada como uma ampla meditação sobre "o que se foi". Os nomes e os signos caracterizam os polos narrativos da série, construindo um misticismo enigmático reverberando a forma pela qual cada personagem interage no mundo.
The Leftovers é melhor vista, talvez, se tomada como uma ampla meditação sobre "o que se foi". Os nomes e os signos caracterizam os polos narrativos da série, construindo um misticismo enigmático reverberando a forma pela qual cada personagem interage no mundo.
A execução da série permite se apropriar de diversas crenças e arremessá-las numa espécie de "pós-mundo" em que 2% da população mundial sumiu, mas os que permaneceram ainda parecem estar incorporados por resquícios inexplicáveis duma Tragédia que é, evidentemente, maior que qualquer coisa já vista. A grandiloquência do roteiro pode assustar, mas é a partir deste Universo gigantesco que The Leftovers investiga as intimidades excêntricas de suas personagens de forma completamente antagônica à maioria dos melodramas que circundam pela televisão. A visão de Damon Lindelof (criador da série) aceita os valores fragmentados no caos moderno (religião,ciência, família), imprimindo num pequeno ambiente duma pequena cidade (inicialmente) uma ruptura (a partida) que vai afogar suas personagens -às vezes, literalmente- em uma profunda crise em relação aos valores-próprios e a dinâmica de interação numa sociedade alienada. O axioma da Crise Global assumida por Lindelof não restringe a série em mero "suspense", pois se trata duma complexa jornada em busca de (esquecidos) alicerces próprios. Reconhecendo outro trabalho de criador, Lost, alguém poderia pensar que é um "quebra-cabeças", mas essa ideia não perdura.
Entre qualquer afirmação que atribua um gênero para a série, talvez "esquisito" seja a mais correta- é um mergulho vertical no caos social e seus fragmentos dúbios de realidade/virtualismo que se solidificam mais em algumas pessoas (Kevin, o protagonista, chefe-policial) ou são restritos a outras (Laurie, ex-esposa de Kevin). Como muitas vezes somos levados a supor, os que "restaram" no mundo poderiam sim ser os Mortos, mas os constantes socos da realidade (doenças mentais, suicídio, divórcio, perda de filhos, paralisia, pedofilia) são lembretes constantes de que o realismo impregnado da série grita em meio ao caos mundial.
A fim de espelhar esse apocalipse global no cotidiano das personagens, Lindelof não hesitou e radicalizou o frenesi contemporâneo numa narrativa extremamente inventiva, deixando claro a impressão de que somente através dessa grande desmedida essa história poderia ser contada.
II - Loucura Global
O axioma da primeira temporada é originado no romance de Tom Perrota, Os Deixados Para Trás (2014, no Brasil). Enquanto o bom livro é baseado numa pequena comunidade através do dia-a-dia e as tentativas insistentes de seguir em frente, apesar da Partida, a série parece olhar para essas pessoas duma forma panorâmica, construindo uma intricada teia de acontecimentos. O que significa que a primeira temporada ainda contava com um Lindelof deliberadamente preso à uma narrativa. O ciclo "normativo" da primeira temporada é quebrado com um episódio voltado inteiramente à Nora, quem perdeu toda sua família na Partida. O vocabulário da série, especialmente a partir daquele episódio, começou a misturar elementos de "outro estado mental (apesar disso já estar implícito em Kevin), com componentes musicais (a irônica/tocante trilha sonora de Max Ritcher) e o mundo das personagens estava se tornando cada vez mais difícil de distinguir sobre o que era realidade ou consciência própria. Nós assistimos a segunda temporada apenas para saber que era possível inserir novos tipos de retaliação nos telespectadores a cada episódio, o que fez irmos bem preparados para a terceira. A extensão desta, mais do que "explicar" qualquer coisa, adicionou novos itens em uma estética visual/narrativa de difícil categorização.
A arquitetura lógica se mostrou cada vez mais intrincada e não é nada de outro mundo descobrir que episódios da última temporada constroem narrativas fechadas e arriscadas com episódios de outras temporadas, construindo uma ambiência própria que muito independe, ficcionalmente, do contexto da série. Isso indica uma liberdade criativa plena de Lindelof, mas também numa espécie de pacto deste com seus telespectadores: que ele não iria nos subestimar e nos deixar em quebra-cabeças idiotas (como fez em Lost) enquanto iria acelerar o desgaste-total das personagens. Se, por exemplo, em Breaking Bad as situações-limítrofes eclodem nos três/quatro últimos episódios de cada temporada, The Leftovers é um survival psicológico a cada segundo. A identidade é muitas vezes desafiada e a "festa" de esquisitice se propaga de modo que a paranoia íntima é estimulada pela loucura global.
A suspensão de três anos entre a narrativa da segunda e da terceira temporada ambienta as personagens em uma apresentação quase idílica. Lógico que isso se desestrutura logo no primeiro episódio, catalisado pelos acontecimentos bizarros que sempre caracterizam a série. Prontamente percebe-se que a paz estabelecida não se tratava tanto duma farsa, mas a forma encontrada para o fôlego perante tudo que estava porvir. Tal suspensão nunca existiu, de fato- Kevin, por exemplo, se asfixiava todo dia apenas para continuar comprovando sua imortalidade.
A personagem de Kevin, aliás, está sendo retratada como um novo messias; Matt, irmão de sua namorada (Nora), está escrevendo um novo Novo Testamento, especificando os acontecimentos das duas primeiras temporadas, especialmente os que cercam a vida do chefe-policial, uma vez que este é uma espécie de Jesus aos olhos do cunhado. O que implode numa viagem bizarra à Austrália envolvendo deuses, animais, drogas e gurus. Não há uma personagem em particular que não tenha seus limites testados, o que garante aos poucos episódios da última temporada (oito, no total) micro resoluções que testam a capacidade de resistir a situações-limítrofes. O que estende a qualidade da série ao ponto que cada pessoa vê Kevin como uma salvação de maneira diferente, impregnando suas crenças e pré-conceitos. O mesmo Kevin que morre diversas vezes apenas para outras personagens provarem seus pontos, mas que parece muito angustiado não apenas por carregar esse peso, mas por também não conseguir elaborar uma visão-própria. Ele apenas é um agente receptor de significações alheias.
No entanto, precisamos notar: não há ninguém em The Leftovers que não esteja desesperado por compreensão enquanto são engolidos pela angústia dum luto, aparentemente, insuperável. Esse é o antro que une as pessoas que vagam pela série e se irmanam no desespero. Tudo isso, inevitavelmente, é radicalizado na forma como essas pessoas veem o Mundo e tentam emprestá-lo espectros salvadores; Leões, Messias, dança da chuva e coisa e tal.
III - Fragmentação
Se nós deixarmos de lado a mitologia, a série ainda pode falar sobre muita coisa. Mas os elementos simbólicos nascem fadados ao fracasso. Assim como John Locke em Lost, The Letfovers está preenchida por pessoas que aspiram uma transcendência metafísica que muito se confunde com uma paranoia-crônica. Então existem personagens como o pai de Kevin, também chamado Kevin, que tem todo trejeito de profeta (barba longa, ouve vozes que ninguém mais ouve), mas estão inevitavelmente amarrados ao Fracasso maior. Esses axiomas de aspirar uma religiosidade ultrapassada são vetores que investigam o vasto plano de fundo que são as relações humanas. Porque não se trata apenas de fé, mas o retorno cíclico ao Sagrado para tentar resolver as coisas. A Pura Condição é representada em Kevin como um receptáculo de significações alheias e para cada uma dessas atribuições o protagonista se vê em dilemas morais de alta prioridade; matar & morrer. O painel de múltiplas figuras de The Leftovers interage a partir de mecânicas falsificadas para provocar sentimentos brutalmente reais. O ponto é: a partir dessa falsificação é realizada uma análise de personagens das mais profundas que eu vi na TV. Tecnicamente falando, Kevin é a antítese dos "caras durões" que regem os shows consagrados. Em retrospecto, eu não lembro de nenhuma cena autoafirmativa (o que ocorreu a rodo em Breaking Bad, The Sopranos e The Wire). Está claro que sua dificuldade em discernir o real é que valoriza essa característica - não a toa, o retrato mais vulnerável de Tony Soprano, em The Sopranos, é quando seus sonhos invadem sua realidade. Esses axiomas impregnados em quem lidera a visão narrativa da série que não apenas constituem uma áurea de Mística Fracassada em The Leftovers, mas são também atribuições necessárias para a visão fragmentada que Lindelof empresta à sua criação:
a. o axioma físico
Essa condição é uma das técnicas de filmagens mais paradoxais dos últimos tempos; a câmera fetichiza o corpo escultural de Justin Theroux, que interpreta Kevin, enquanto sua face evidencia uma angústia, especialmente no arqueamento das sobrancelhas, desoladas. O que é nitidamente irônico e deveras cruel por parte da equipe de direção; a personagem Kevin é extramente frágil & insegura quanto ao Mundo que a cerca. A disposição desses múltiplos rege sobre uma unidade constantemente estranha ao telespectador. Como se a familiaridade com o protagonista, paralelamente, aumentasse nossas incertezas do que ronda sua vida. A lógica dessa demonstração física não é atribuir diversas características qualitativas a Kevin, mas sim implicar o mundo desmedido que ele explora em busca duma espécie de autorredenção.
Em especial nos episódios que ele é um Assassino Internacional, essas múltiplas abordagens irrompem sobre Kevin para transparecer alguém muito, muito perdido.
Nesses momentos em que Kevin "anda" por outros Universos, seu físico mal é testado (apesar disso ser seu esforço diário. Vale lembrar que a série começa com ele correndo pela cidade) e frequentemente seu corpo é exibido nu em uma situação tanto improvável quanto bizarra. Em uma linguagem conceitual: sua imposição física (terrena) nada pode contra os espectros conativos (Céu, Deus, psicológico).
b. axioma do espelhamento
Uma vez que o múltiplo não pode ser apenas exibido como uma única Realidade, a série se permite criar múltiplos universos que espelham mais uma ou outra personagem, mas com papéis bastantes trocados. Por exemplo, Patti (que se matou em frente à Kevin) pode muito bem assumir um papel de candidata à presidente dos EUA enquanto Kevin, neste outro Universo, tem a função de matá-la. A disseminação da crueldade para a origem das funções variadas, ao contrário dum processo multiplicativo matemático, não apresenta resultados e muito menos a configuração de enigmas. É como se ao espelhar diversas personagens em diversos Universos, Lindelof estivesse investigando o desconhecido em cada uma. Essa operação é o inverso de um simples Mistério; pois a medida que cada investigação se torna mais profunda e desgastante, novos símbolos ganham vida entrando num ciclo eterno.
O amor entre Nora e Kevin é também reflexo de duas almas (para falar em termos religiosos) irmanadas no sofrimento originário. Claro, as formas são diferentes- ela perdeu toda sua família, ele está constantemente ludibriado pelo que é apresentado como Real. Eles são resultados-finais de toda a investigação da série; The Letfovers teria de acabar, invariavelmente, com o fim do movimento circular desvendando uma nova origem a partir da união amorosa. As conversas sistemática entre eles são, constantemente, os pontos de redenção em três temporadas desgastantes e emocionalmente exigentes. Porque se a série mostra diversas formas de destruição psicológica & física, é especialmente nos encontros entre Kevin & Nora que o mundo deixa de ser uma aparição duvidosa para firmar alguma Certeza.
a. O Mundo se decompõe à medida que Kevin abandona Nora. A série entra, a partir duma briga entre eles num hotel, em uma sucessão de episódios que incluem; falsos profetas, sonhos, Deuses, animais, caçada a messias.
b. Nesse processo vemos as atitudes desesperadas num espelhamento múltiplo.
O processo que envolve "b" é muito profundo; há um desespero frenético & global. Como se todas as pessoas do mundo estivessem infectadas frete ao mesmo Fantasma que é, numa paranoia Mundial, a chegada iminente do apocalipse. O objetivo de dar para as pessoas "o que elas querem" é encarnado por Kevin devido à sua condição de receptáculo e também é um jogo metalinguístico com o que a plateia espera de uma história (teoricamente) apoteótica. Isso seria impossível se Lindelof se prendesse a encenações ou mistérios e por isso a radicalização narrativa foi o meio encontrado para abastecer tanto telespectadores quanto personagens. A resposta de Kevin, no entanto, sempre foge de compreensão.
A decomposição do mundo pós ruptura entre Kevin e Nora é uma consequência natural, pois eles eram tão semelhantes (e na linda cena em que eles conversam na banheira sobre Morte isso fica claro) que praticamente eram segmentos naturais um do outro. Ou seja, é de uma conexão tão íntima e interiorizada e sua consequente destruição que as bases seguras autorizam um colapso que não diferencia esferas; global ou pessoal.
Usando as metáforas de elementos religiosos para dimensionar a profundidade do inferno pessoal (Fim do Mundo, Apocalipse), Lindelof pôde caracterizar a fragilidade dos mitos religiosos em suas personagens. Isso é, se Kevin é apresentado com uma pessoa não muito confiável no sentido realista, seu maior defeito é realmente preferir as ilusões e criar labirintos nestas ao invés de tomar partido por decisões menos duvidosas. Não me levem a mal, Kevin está no limite todo o tempo, sem repouso algum, e são todos seus erros que possibilitam um acesso entre a grandiloquência duma história metafísica e a intimidade de um pai, namorado & homem. Em outras palavras; ela é a personificação exagerada da onipresença da Morte das pessoas que ele mais ama, intensificando a terrível sensação de luto a cada instante. A multi-representação da Morte impõe uma Solidão Radical a Kevin.
Dado essa postulação de "fantasma que vaga antecipadamente pela morte de seus entes queridos", as horríveis visões de Kevin encenam a angústia quando os laços que você arduamente construiu se rompem de forma inexplicável. Não há escolha possível e habitando na própria Incerteza que o protagonista vaga, incessantemente, rumo ao Lar e a algum lugar em que os queridos esperam-no.
A Homogeneidade fundamental do ser está além dos tabus institucionalizados e The Leftovers parece supor que essa Unidade é o encontro inenarrável de diversas instâncias radicais; Fé, paranoia, Mitologia. Assim como a origem realista de qualquer história religiosa é muito questionável, há uma dose de Amor que circula cada uma delas. Nem uma prova concreta pode tirar isso: as lições que nós temos sobre as coisas mais elementares da existência- morte, afeto, seguir em frente. A série anuncia que há coisas mais importantes do que a forma como as histórias são contadas.
c. o axioma da União
O que equivale a afirmar que por mais absurda que a existência pareça - e em The Leftovers o Real Aparente é levado ao extremo -, ela sempre está precedida de um Enigma que está do lado de Fora. As mudanças entre Mundos (ou aspectos aparentes) não erradica uma Força que move as personagens- especialmente Kevin e Nora.
O que o amplo painel de The Leftovers afirma é que há uma carga indecifrável gigantesca de Dor que se amarra em nossos tornozelos tornando cada passo mais difícil, ao ponto de ficar evidentemente atraente pensar em sucumbir. Considerando tudo, não há muito o que fazer a não ser continuar andando.
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