A crença de Thomas More na força do ser humano persiste por mais de 500 anos numa época em que a fé é encarada com deboche.
"O homem, afirmam, está unido ao homem de uma maneira mais íntima e mais forte pelo coração e pela caridade do que pelas palavras e protocolos"
O que é a Utopia, essa palavra mal usada? O mundo imaginado por Thomas More era a representação da sua vontade em relação à extinção dos problemas sociais. Grande exemplo do humanismo, o autor teria sua cabeça decapitada por ordem do rei Henrique VIII. A crença no ser humano parece irônica quando não houve irmandade em relação aos supostos crimes que More pagou com a vida.
Os utopianos, cidadãos da ilha de Utopia, não acreditavam em tratados- pois estes colocavam os Estados acima dos seres humanos, causando a separação. As brigas são causadas pela distância, pela impossibilidade do reconhecimento do outro. Trancados em sua riqueza e em sua torre de marfim, não é de se duvidar que tal empatia cognitiva inexista em poderosos como Henrique VIII.
O gosto pelo ser humano não impediu a sentença de morte que , no caso, foi recusar-se a prestar juramento religioso ao rei (ainda que More fosse ardoroso católico) e reconhecer o poderoso como figura maior no âmbito da fé.
Perceba que o humanismo demonstrado por Thomas More tem como forte causa de identificação o sentimento religioso, sendo sua fé tão intensa que se recusou a fazer uma espécie de "empréstimo espiritual" por acreditar na existência divina de forma inabalável. Acreditar sinceramente na força da razão e se defrontar com um mundo concreto em decomposição foi, provavelmente, seu maior teste de fé- não em Deus, mas na grandeza compartilhada na qual ele profundamente confiava.
O sistema político perfeito
No caso do livro Utopia, essa fé mostrou-se inabalável quando o autor atacou a "licença moral" promovida por Maquiável ao evidenciar que há outro mundo além deste corrompido. More, que exerceu diversas ocupações (desde advocacia à diplomacia), destacou-se ao avaliar a falta da empatia como marca de uma sociedade decadente. Saindo da posição cômoda, é notável a coragem do escritor ao vislumbrar outra forma de sociedade além deste mar-de-lama.
Como alguém disposto a conduzir seus contemporâneos a acreditar que os poderosos devam agir pelo interesse coletivo, atacou duramente reis e príncipes ao dialogar diretamente com os cidadãos. A forma de Utopia (diálogos platônicos) mantém o leitor frequentemente atento às diversas conversas entrecruzadas que se opõem à narrativa central (a distribuição política da ilha Utopia), a qual constantemente cita exemplos opostos às ordens vigentes.
Rafael Hitlodeu, personagem principal, narra os fatos da ilha e explicita sua não vontade em participar de nenhum tipo de governo que não seja o de Utopia. Essa renúncia de Rafael, no entanto, não é compartilhada por More em sua vida privada. Para mudar o mundo e torná-lo um lugar melhor, é necessário negar o jogo sujo e a hipocrisia do "bem maior" e enfrentar as consequências de uma sociedade a qual você mesmo condena. O que é exatamente o contrário do loteamento estatal promovido pelos nossos governos desde as primeiras eleições diretas (com raríssimas exceções).
Se ,para Rafael Hitlodeu, a renúncia à configuração social é algo impossível após testemunhar a perfeição de Utopia, para Thomas More -cuja fé no ser humano não o deixa ser imparcial perante o jogo político- desistir foi algo impossível. A hipótese de deixar se submeter é proteger as falhas estruturais da sociedade. O fato de existirem pouquíssimas leis na ilha de Utopia (e a consequente ausência da classe de advogados) faz com que a concepção de More a respeito do sistema judicial seja evidente.
O símbolo da decadência social talvez seja a quantidade de leis que uma sociedade compõe. O não conhecimento das leis ,para Thomas More, não reflete a suposta ignorância do povo, mas é o hermetismo das sentenças judiciais que o deixa sem palavras, sem condições de defesa. A consciência da existência de uma linguagem tão complicada não erradica o problema. Para tanto, a alternativa do autor ao criar uma sociedade com campo jurídico inexistente. A sugestão de More pela abolição das leis e da sociedade privada constituem a crença no ser humano sem adornos, preocupado com coisas mais notáveis e não submetido às aparências desprezíveis (ouro, vaidade, distinção etc.).
Há ,por trás dessas críticas, a urgência da necessidade de uma reconstrução da divisão dos bens em prol da diminuição da desigualdade. Na Utopia, a livre crença na alma humana não se imortaliza apenas por sentimentos religiosos, mas pela fé na vida em todas as suas manifestações tanto espirituais quanto sociopolíticas.
Na ilha de Utopia, o valor do ouro é ínfimo porque não tem funcionalidade específica para a sociedade (ao contrário do ferro, por exemplo). Descobrir as coisas realmente valiosas talvez seja uma das empreitadas mais corajosas de More. A potência da humanidade está oculta, embaixo do véu do abstrato (paradoxalmente real) como o ouro, a guerra etc. A trágica situação política, os projetos dos colonizadores (em uma linguagem do século XXI: as instituições neoliberais) e o horror da miséria são ferramentas de manutenção desse encobrimento.
Uma nação tem como problema a carência de imaginar um projeto utópico alternativo, o que a impede de sair da asfixia do mercado, o que a impede de atender necessidades elementares. Desenhar a imagem de um país que "pode ser" e que "deve ser" trata, para More, de um gênero humano novo. A política momentânea é deixada de lado para o "pensamento da eternidade" (a utopia política de Guimarães Rosas, quatrocentos anos depois). Utopia é o projeto político de romper com essa merda, com a fome, com o desemprego e com o descaso das instituições canônicas. A experiência das ocupações de terra no Brasil, o esboço criativo antevisto por Rosa e a luta pela reforma agrária cabem no projeto impossível do escritor inglês.
A criação do movimento utópico, a partir da incorporação pragmática dos ideais de More, dirige o Estado a uma ideia coletiva de riqueza cultural, cuja experiência teórica continua a fundamentar os diálogos entre os mais diferentes campos sociais.
Período Anormal
O povão brasileiro necessita de uma abordagem intelectual que tenha um projeto dialogante com suas necessidades e urgências. Parece que as propagandas conversam mais com nossos cidadãos do que qualquer esboço de projeção acadêmica.
A dúvida do narrador de Utopia se o livro deveria ser publicado é fundamentada no quanto a obra realmente tinha a dizer para as pessoas. Há, até mesmo, o receio de os "juízos absurdos" de outrem. As pessoas não conheciam e tinha medo da literatura (o que não é diferente do contemporâneo. Se, mais de quinhentos anos depois, esse medo persiste, vale questionar de quem é a responsabilidade).
Ser condenado ao silêncio ou à morte? More não teve dúvidas. A derrocada humanista é conferida no que os quinhentos anos posteriores ao livro trouxe à humanidade. O argumento de More se mostra como uma tímida fagulha no escuro em um imenso campo neoliberal, cuja fundamentação insiste no papel cada vez menor do Estado nas esferas sociais.
More não necessariamente via uma representação democrática como bom papel para reparar os equívocos destrutivos forçados pelo poder. Segundo ele, a representatividade popular de um bom político se dá a partir de um redimensionamento do papel dos governantes na ordem social (rebatendo, mais uma vez, Maquiável). Aí está a vigilância espontânea que erradicaria a miséria, o silenciamento popular etc.
A fundação da humanidade, portanto, passa pelo bombardeio da condição de governáveis àquela de possibilidades incríveis, em que uma nação está apta a realizar suas potencialidades.
More deu muito a mundo por crer na condição humana.
A criação do movimento utópico, a partir da incorporação pragmática dos ideais de More, dirige o Estado a uma ideia coletiva de riqueza cultural, cuja experiência teórica continua a fundamentar os diálogos entre os mais diferentes campos sociais.
Período Anormal
O povão brasileiro necessita de uma abordagem intelectual que tenha um projeto dialogante com suas necessidades e urgências. Parece que as propagandas conversam mais com nossos cidadãos do que qualquer esboço de projeção acadêmica.
A dúvida do narrador de Utopia se o livro deveria ser publicado é fundamentada no quanto a obra realmente tinha a dizer para as pessoas. Há, até mesmo, o receio de os "juízos absurdos" de outrem. As pessoas não conheciam e tinha medo da literatura (o que não é diferente do contemporâneo. Se, mais de quinhentos anos depois, esse medo persiste, vale questionar de quem é a responsabilidade).
Ser condenado ao silêncio ou à morte? More não teve dúvidas. A derrocada humanista é conferida no que os quinhentos anos posteriores ao livro trouxe à humanidade. O argumento de More se mostra como uma tímida fagulha no escuro em um imenso campo neoliberal, cuja fundamentação insiste no papel cada vez menor do Estado nas esferas sociais.
More não necessariamente via uma representação democrática como bom papel para reparar os equívocos destrutivos forçados pelo poder. Segundo ele, a representatividade popular de um bom político se dá a partir de um redimensionamento do papel dos governantes na ordem social (rebatendo, mais uma vez, Maquiável). Aí está a vigilância espontânea que erradicaria a miséria, o silenciamento popular etc.
A fundação da humanidade, portanto, passa pelo bombardeio da condição de governáveis àquela de possibilidades incríveis, em que uma nação está apta a realizar suas potencialidades.
More deu muito a mundo por crer na condição humana.