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terça-feira, 26 de maio de 2015

AVA ROCHA – AVA PATRYA YNDIA YRACEMA (2015)

Depois da dissolução da banda Ava, Ava Rocha lança seu primeiro disco em projeto solo. Pode-se ver esse novo disco como uma série de evocações. Já que está em lançamento próprio, a cantora parece mais disposta a experimentar por diversos terrenos. As certezas estéticas se esvaem em múltiplas sonoridades, como se estivéssemos em um espaço totalmente livre e pudéssemos nos dirigir para onde bem entendêssemos.

Talvez essas voltas que, à primeira ouvida, parecem despreocupadas demais, denunciem uma artista demasiada compromissada com os detalhes. AVA PATRYA YNDIA YRACEMA é cheio deles. Essa liberdade vai muito além de meras reverências, porque a música de Ava pulsa numa tentativa de escapar de uma espécie de prisão, da solidão. Ela quer a liberdade de andar pela rua e se deslumbrar pelas possibilidades da caminhada. Parte-se desse “pensar que é” para olhares mais aguçado ao redor, numa tentativa de desconhecimento de fórmula simples. Como em “Transeunte Coração”, o amor de Rocha se localiza no deslumbramento do desconhecido. Ela foge de domesticações que muitas vezes esse tipo de música (popular) impõe para respirar num lugar mais brando que ela mesma não cessa de construir. Com a frase “não sou em quem você procura” ela já deixa bem clara suas intenções. Ainda que esse coração pulse, ele não trás os vestígios da imposição contemporânea de uma suposta “necessidade” de ser amado. Ele quer bater livremente. Essa definição de “si” pode parecer provocação, mas só quem pensaria nisso seria uma pessoa muito presa em conceitos ultrapassados.

Não deixa de ser surpreendente; estruturas que a rigor pareciam mais “comuns” transmutarem-se completamente durante as músicas- aderindo microfonias, chiados, etc. Mas a vastidão que AVA PATRYA YNDIA YRACEMA certamente cobre é toda direcionada pela intimidade de Ava. Mesmo com todos os escapes sonoros (e acreditem, eles são muitos), a voz de Rocha perdura em ambos os planos – no campo onde o experimentalismo avança, e nas transições relativamente mais simples (se comparadas com os momentos mais “porra-louca” do disco). Ela habita todos esses lugares, e com muita coragem ousa desbravar esses terrenos. Era de se esperar, no entanto, que as duas seções não soassem tão próximas. É exatamente o que não ocorre. Em “Mar Ao Fundo” temos uma explosão sonora absurda sobre um clima mais “inofensivo” que a canção construiu. Não se trata de “elementos surpresas”, mas de uma exploração corajosa, sem meias verdades. Vemos a intensidade ao mesmo momento em que a brandura existe, porque ambas as sensações têm a mesma matiz. A arte de Rocha, no caso.

Claro, se ela que canta, essas sensações obviamente teriam o mesmo ponto de partida. Contudo, repito, embora existam vários momentos que a progressão sonora se “dispersa” em ecos, microfonias, cordas soltas, a transição para essas catarses representam também o caos que os momentos mais calmos exprimiam. Não à toa, o movimento de transe hipnótica em “Mar Ao Fundo” cai positivamente em um violão e um assobio. O que acontece em todo o disco; os movimentos de “repulsa” e “atração” se sobrepõem, nunca existem individualmente. Estão amarrados na voz de Ava. Ao fundo de todos esses rompimentos e retornos a certo tipo de sobriedade, a mesma inquietação em doze canções que rompem significantes simples para estabelecer uma nova voz poderosíssima. A banda de roque da garagem, o livre improviso, litorais com luau, confusão urbana- Ava traz a cacofonia confusa do mundo contemporâneo justamente para celebrar uma imensa incerteza. O ponto é; percebe-se essa intensidade também nos momentos calmos. Ela é onipresente.


Todo o transe em AVA PATRYA YNDIA YRACEMA evoca um gosto pelos limites da vida, em que se pensar nos sentimentos doces canaliza lembranças que se convergem para uma expressão tão abrangente do presente. Mas Ava fornece esse aspecto a partir da sua intimidade, que se mostra profunda. E se tal análise se expressa por uma voz tão contundente como a dela, que nunca se debruça sobre a monotonia, melhor ainda.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Anna Clock- "Celestial" [2015]

Nos tempos atuais em que jornalistas preguiçosos jogam qualquer repetição vocal/sonora para a aba do “noise” (afinal é tudo barulho!), artistas como Anna provocam uma reação assustada de quem tem tanta necessidade de taxar música. Podem-se encontrar variações interessantíssimas em cima do processo “exaustivo” que Celestial é. Todas essas alterações são notáveis porque existe a repetição. Separá-las em “movimentos repentinos” seria excluir a integração que forma o bloco sonoro proposto por Anna.

Nomear não deveria ser o objetivo então. Não no famoso clichê “nomear X é reduzir X”, mas que conceitos em cima de conceitos limitam a experiência que a audição de Celestial pode causar. Para não pecar pelo excesso ou falta deste, há de se explorar as possibilidades ampliadas pelo álbum, o que significa passar pelos seus quase quatorze minutos se perdendo e se encontrando, em uma espécie de jogo de aparições iminentes. Talvez essa fuga que caracteriza todos os momentos de rupturas em Celestial seja também a fuga da nomeação. Fugir da classificação, porque por mais “radical” que uma tag seja, ela já está domesticada. Em um plano oposto, é exatamente o que a música de Anna não quer.

O começo de celestial projeta drones clássicos e uma melodia vocal que não entoa exatamente palavras. É como uma harmonia preponderante reinasse um campo de cansaço. Um plano belo, no entanto. As cordas e os pratos projetam toda essa beleza em um desenvolvimento estranhamente inconstante. Inconstante porque amplia a sensação de certa incoerência na repetição. É muito louco. No atroamento do ritmo mais intenso, os instrumentos de cordas tornam-se mais discerníveis. É a tentativa de afastamento. Justamente no momento de maior encanto, é que existe a separação mais brusca. Nessa convergência, o vocal começa a cantar palavras de verdade. O mais curioso é ver como a “união” inicial se desmancha em uma bela poesia. Nesse caso, a união era uma prisão. A harmonia era forçada!

Lidando com conceitos mais “densos” na música, ao mesmo tempo, a sonoridade de Anna puxa certa juventude. Indo para além de uma autopiedade embaraçosa, toda performance dela é uma transe entre o “interno” e a reflexão no vazio exterior, se trata aqui mais de uma “aceitação” do espírito trágico, ao mesmo tempo em que a compreensão de que tudo é tão simples quanto observar as estrelas.

A descoberta da singularidade é o processo de Celestial. Mas ao invés de muitos lugares-comuns (a transição rústico-elaborado), sente-se um empenho pela composição muito bem executada nos dois momentos. Há espaço para a poesia e espaço para a confusão também (não que a poesia seja sinônima de certeza, inclusive as palavras indicam o contrário), ambos os ambientes habitados pela voz, pelos instrumentos de cordas e os pratos. Há o comportamento distinto em dois momentos. Porque o reconhecimento da singularidade de Anna no vazio celeste exige essas transformações.


Mas não se enganem por toda a beleza que a áurea de Celestial exibe. Já disse que há espaço para tudo nesses treze minutos, inclusive para o caos. As trompas invadem e provocam uma zona sonora. De repente, a voz de Anna cede e parece que ela não tem mais tanta certeza. Essas convicções desmanteladas, no final, é o que vão garantir o espaço para a poesia final. A poesia nasce da confusão e do incerto, das tribulações que formulam nossa existência. Somos humanos filhos dos erros. Há tanta beleza nisso que Anna a transpõe para um pacto com o celeste.

terça-feira, 19 de maio de 2015

DUDA BRACK – É [2015]

Depois que me falaram após algumas cervejas em um boteco, de que eu “precisava” ouvir o álbum de Duda Brack, o fiz assim que cheguei a casa, com expectativas altas. Devo dizer, que de primeira, as melodias da cantora me soaram muito próprias, fugindo do senso comum. Mas seria apenas a voz poderosa de Duda o elemento forte do disco? Aí que a guitarra distorcida surge. Inclusive, “É” é um disco que se trata de interpretações que Duda realizou de outros artistas. Sentimos nela uma necessidade de encarnar essas músicas de diversas autorias, realmente forçando incessantemente sua voz em cada uma. Brack é daquelas pessoas que não “esperam” a inspiração- as músicas soam mesmo como se houvesse a necessidade implacável. Ela decididamente prefere arriscar.

O jogo forte que a distorção da guitarra impõe funciona como locomotiva para qualquer suposta “zona” de conforto que Duda possa pensar em se acomodar. Apesar dessas “apropriações” de músicas alheias, sente-se que Brack viola as expectativas que se pode ter dessas versões. A escolha delas também contribui para a ideia de voracidade que suas interpretações causam. O espírito de Duda se crava ferrenhamente nessas concepções, porque com certeza elas desde sempre a habitaram.

Não deixa de ser impressionante o fato de este ser o primeiro disco da cantora. Sua interação com a banda vai além do mero “eles ficam bem juntos”. Essa produção faz um necessitar do outro, as melodias se confundem com a música popular brasileira enquanto o instrumental tem decididamente um pé forte no rock. Mas todo esse conjunto forte que o instrumental propõe alcança outras proporções com a voz fortíssima de Duda. Os instrumentos ficam mais potentes porque a interpretação da cantora os alça a outro nível.

Claro, as condições do álbum também proporcionam essas “minicatarses” em cada canção. Trata-se, principalmente, de “não narrações” que estabelecem cenários impulsivos revelando as mais variadas condições da cantora. O que acontece na abertura lúdica de “Venha”, que conta com uma narração que inicia como um “sonho”. Aos poucos, a tensão vai se desenvolvendo, como se o objeto “por vir”- Agatha Christie, José Saramago- fosse chegando mais e mais perto, numa evocação de espíritos. O próprio ambiente vai se “distorcendo”, afinal estamos mesmo em um terreno muito estável e transcendente.

Mesmo nas suas declamações finais, que são mais calmas que toda a pegada do disco, Duda afirma sua ideia de “desmedida”. Ora, é essa mesma desmedida que curiosamente regula o disco, em um campo onde a tensão é constante. Possivelmente o “conceito”, se é que o disco tem um, é apresentar uma artista que, embora não tenha suas decisões límpidas e concretas, quer se atirar, quer enfrentar.


Pela pouca idade, muitas pessoas certamente pré-julgariam alguma “ingenuidade” no comportamento de Duda. O que, obviamente, não ocorre. Brack busca uma voz própria a despeito de todas as contrariedades do mundo, que são colocadas na música. É uma cantora de desafios. Mas ela se entrega tanto a cada canção, que o estímulo se confunde com uma vontade absoluta de provocar tanto o ouvinte como o próprio instrumental, que caracteriza Duda como uma líder de banda nata. Essa essência de puxar limites é a sensação que “É” enquadra. Não serão meras apropriações de composições de outrem, mas esforços pesados em uma direção para além do que aponta o senso comum. Tudo isso, vale lembrar, num álbum de estreia.

segunda-feira, 18 de maio de 2015

Lil Ugly Mane - Third Side of Tape [2015]

Lil surpreendeu todos com esse lançamento. Se alguém visita o soundcloud do artista, pode perceber que lá anuncia que o projeto “Lil Ugly Mane” está morto. Quem está habituado a seu trabalho, vai encontrar aqui os mesmos elementos dos outros lançamentos- as influências pós-industriais com o instrumental do rap, além de adesões mais sinistras e referências complexas que destoam do primeiro plano (isso quando há um primeiro plano). O abstracionismo do primeiro lado já é notável. As transições são bruscas, os samples dos rappers predominam sobre bases abstratas, quase sempre se dissolvendo em outros efeitos completamente inesperados. Embora essa espécie de estranheza é esperada para quem conhece seu trabalho, a proposta aqui é diferente de outros álbuns que o deixaram aclamado no meio underground.

Third Side of Tape trabalha como uma retrospectiva dos trabalhos antecessores de Lil. Desde os lançamentos mais crus a outras produções mais elaboradas, sua obra reside exatamente “entre” as transições de diversos gêneros para uma construção concisa dessa mistura. Pode-se sentir que a modulação eletrônica de Lil diversifica uma base de samples gigantesca. Mas não quero tratar de que a simples “curadoria” de Mane se garante sozinha. É justamente as distorções desses elementos e seus diversos pontos de encaixe, muitas vezes abruptos, que localiza uma progressão entre as suas primeiras obras e Third Side of Tape, que é uma retrospectiva poderosa de sua carreira, uma vez que a “montagem” das faixas obviamente não segue cronologia alguma. O acionamento do “horror” a proporções absurdas, gerando resultados surpreendentemente uniformes, mantém uma atmosfera obscura estabelecida pela disseminação de transições, como se essas mudanças evidenciassem o desconforto e a urgência de Lil. Suas influências também acondicionam uma espécie de “universalidade” que simplesmente acontece. Não temos um artista tentando desesperadamente se acondicionar no que preguiçosos acostumaram chamar de “world music”, mas sim estados de incômodo em que uma transmutação se faz necessária. Fica complicado descrever o álbum, é necessário já estar exposto a alguns de seus discos antecessores, uma vez que a “investigação” nos trabalhos de Mane torna, asseguradoramente, esse percurso de duas horas muito mais palpável.

As colagens, sem dúvida, são os pontos mais altos do disco. Incrível como elas são introduzidas como uma continuação lógica interna do que Lil queria significar em cada música. Seja nos raps mais acelerados e falados, ou num Techno que vai evadir em jazz. É como uma jornada em que o reconhecimento de cada diversidade sonora é apresentado como uma memória, e estas insurgem com uma força própria, desmerecendo qualquer medida temporal. No desenvolvimento do disco, há uma tentativa de aproximar distintos significantes, isso amplia a estética, dando poder também ao público e espaço para que este forneça suas próprias experiências. Não se trata daquele mero espelho de “se reconhecer nas canções”, mas sim da origem cognitiva de cada pessoa. As influências de música “disco” dos anos 80, por exemplo, certamente irá influenciar cada ouvinte à sua maneira. No entanto, ela tem uma importância no próprio discurso. Ou seja, nada é tão abstrato em Third Side of Tape, mas ele deixa várias lacunas que necessitam de pessoas dispostas à preenchê-lo. Com potencial para um “nicho” tão grande, Lil não se permite forjamentos artísticos com apenas colagens sonoras. Pode-se ver que é sim um artista “insano”, mas que sua obra discursa sobre estar incomodado; com o óbvio, com o ambiente que nos cerca. Third Side of Tape é a expansão branda que não estava presente nos lançamentos anteriores. O experimentalismo foge do que antes era “só” hip-hop para um acervo completo de um mundo de imagens elípticas. Incrível como Lil guardou tanto material ao longo dos anos, períodos em que seus lançamentos evidentemente seguiam uma “proposta” mais reservada.


A combinação esparsa desse disco, curiosamente, destoa com as seis faixas anunciadas. Alguém não informado sobre a quantidade de música certamente chutaria muito mais. Mas com Lil nada é “óbvio”, e as diversas naturezas de Third Side of Tape certamente anunciam mais que um artista incomodado com a produção da música contemporânea. Elas revelam um homem trabalhando muito para construir uma assinatura autêntica. Não se trata, portanto, de localização temporal e exibicionismo de conhecimento. Para Lil, o tempo é outra invenção e todas as invenções tem uma origem em comum- a capacidade humana de distorções a realidade em forma de música. É como estar em um túnel onde nunca se esteve antes, e as únicas armas que temos para enfrentar essa incerteza são nossas próprias experiências e nossas memórias. O caminho já está perdido de qualquer forma. Third Side of Tape é o melhor trabalho de Lil porque além do todos os elementos anteriores que já deixavam sua música muito atrativa, evidenciam que Mane tem um legado muito poderoso, que vai lentamente se concretizando em cada lançamento.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

LÊ ALMEIDA – PARALELOPLASMOS [2015]

As pessoas prometem, as pessoas tentam, as pessoas erram. Muito. Lê Almeida tem seus atos como pontos de partida para suas narrações, insistindo com o autoproclamado “roque de guitarra”. Tentativas; acertos e erros. Paraleloplasmos é um disco de tentativas também, embora sua estética se situe em algum terreno que fãs do Slanted and Enchanted certamente se reconheceriam. E, com certeza, iam sorrir ao ouvir uma música como Fuck The New School.

A voz intencionalmente baixa proclama verbos soltos. Parece que ela está destruída, mas assim, de alguma forma, precisa relatar algo. Parece que o coração do músico tenta ganhar sobrevida nesses cantos, na repetição dos riffs, nos efeitos. Eu já ouvi muita coisa do Lê, mas nunca tinha sentido uma relação urgente com a “sobrevivência após a destruição” que esse disco parece tratar. Pensamentos de dias mais dolorosos que tornam o presente mais árduo. É difícil sair dessa situação e “virar o jogo”. É muito árduo se levantar.

Trata-se de reconhecimento, também. São feridas nas quais podemos nos ver. Podemos pensar, “sim, tudo isso é uma desgraça, é tudo muito difícil”. Percebemos-nos no meio de um caos íntimo e com pensamentos que apropriam nossos recônditos; “por que daquele jeito? Por que eu fiz aquilo”. As linhas melódicas da guitarra, no entanto, tornam esse processo mais aceitável. Há a destruição, mas houve vitória. Mas o artista tem que se expressar. Ele tem que questionar os motivos e, se estes o atormentam, ele deve expor essa angústia. Lê está desestabilizado e ele não quer esconder isso. Toda música soa meio “à beira de uma queda”. Mas Almeida já sobreviveu às outras quedas. Ele vai escapar dessa.

É divertida a relação entre “voz x guitarra”. Ao tempo em que a voz de Lê é propositalmente monótona durante o disco, todas as variações são deixadas para a guitarra. É como se Almeida se expressasse com o corpo inteiro e os pontos que as letras não conseguem exprimir são deixados para a guitarra. Este instrumento é uma espécie de porto seguro que impede o “eu lírico” de cair diversas vezes durante o álbum. Talvez mais; seja a força que apresenta uma paisagem mais agradável para que o músico possa olhar pra frente, pois outros dias aguardam e neles mais histórias, mais músicas vão ser compostas, mais pessoas por quem se apaixonar.

Instrumentalmente, há mais variação que nos outros trabalhos. Embora o foco continue sendo a guitarra, esses outros instrumentos se “intromentem” criando uma ambientação sem a qual o disco soaria demasiadamente frágil. Embora “fragilidade” é um qualitativo que o álbum mereça. Ora, ele expõe uma instabilidade evidente desde a primeira canção, “eu tenho pensado / como é ruim sair só / eu tenho tentado / me adaptar a andar só”. Outra relação divertida; as letras que analisam por demais a intimidade do cantor e o instrumental que mira paisagens mais “externas”.


Eu hesitei em falar desse disco em uma esfera só, e apenas só, pessoal porque soaria demasiado piegas. Mas deixo a pieguice para o último parágrafo. Espero, de verdade, que as pessoas se reconheçam nesse álbum. Que elas virem amigas do artista dissipado que reside nesse disco. Precisamos de companheiros de travessia; qualquer forma, ser viva ou inanimada, que nos ajude. Porque, como em Paraleloplasmos, viver é um exercício de retornos frustrantes, partidas tristes- passar por um local sozinho em que você costumava ir com determinada pessoa. De repente, a ausência se torna pesadíssima. De repente, você se grudou tanto a outro que não reconhece sua carne, suas feridas, as marcas na sua pele. Eis o motivo de precisarmos de ajuda.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

The Unthanks - Mount the Air [2015]

Acontece que eu sou um grande fã de música “folk” europeia, como um ponto complemente inverso aos artistas mais radicais eletrônicos que têm feito minha cabeça nesses últimos tempos. Essa espécie de “interesse contraditório” obviamente aperfeiçoa possibilidades, embora obviamente não devêssemos deixar o “simples gosto” interferir no que esse tipo de música pode realmente contribuir com o que é feito hoje em dia. Adrian McNally, pianista do The Unthanks, é responsável por tirar o conjunto desse mero limbo de “reciclagem” e realizar um diálogo contribuinte com a música contemporânea, ampliando as paisagens sonoras, fugindo da mesmice.

O grupo se foca nas partes mais “obscuras” das fábulas medievais para estabelecer ambientes contemplativos, tratando de incerteza, perseguição da beleza e liberdade. O talento de ambas as vocalistas fica óbvio em cada canção, assim como os arranjos meticulosos, criando atmosferas assombradas e intrigantes. Esse trabalho de ofuscamento das partes mais alegres das músicas altera a dinâmica comum meramente nostálgica que muitos conjuntos insistem em fazer desse tipo de música. É impressionante como o violino em Flutter é extremamente sufocante, enquanto a vocal suspira esperanças. Mas todo o clima da música se constrói em sensações decididamente opostas às palavras!

Toda a influência da música tradicional certamente carrega uma importância ímpar para grupos assim. Mas o sofrimento do Unthanks é exatamente sua força. É o sofrimento colocado em música de quem não é contemporâneo de sua época. Gravado em circunstâncias tão calmas, habitantes de uma cidade com cerca de trinta mil habitantes, a banda trata da ausência de determinada época e de como essa falta de virtude passada os atormenta. Veja bem, não é que eles insistem que o passado supera o presente. Trata-se de um registro de pessoas que perderam seu rumo e buscam algo porque tudo que lhes foi ensinado já está num passado distante. Por isso o trabalho de McNally é essencial para percebe-se o ponto dramático desse disco. Seu piano se estabelece entre construções nitidamente clássicas e inserções eletrônicas que soam destoadas, como se o presente estivesse confuso.

Outro ponto que evidencia essa colisão entre contos medievais e ambição contemporânea é a citação do poeta Charles Causley. Obviamente o Unthanks sabe doas parâmetros pós-modernos para criação artista, mas a história é simplesmente um pesadelo que eles não conseguem despertar. Melhor, então, inseri-la na sua visão de música. Pode-se sentir nas dinâmicas entre os instrumentos, principalmente no piano, um detalhamento sonoro voltado a coisas ultramodernas como trip hop ou nu jazz. Isso em letras que tratam de “donzelas” (sim, esse termo é utilizado) grávidas, ou quando o “sono de ouro” (sim, outro termo utilizado) beija os olhos de alguém.


Para ser claro, Mount the Air tem tudo para ser um disco revisionista monótono, com letras tão insossas que valem uma vomitada. Curiosamente não é. Tem-se aqui a elaboração de uma escuridão que contrapõe todas as expectativas.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Gustavo Jobim - A New Life in a New Planet [2015]

É raro hoje em dia encontrar algum paralelo para o corpo sonoro poderoso que Gustavo vem construindo. Estranhamente pouco citado, eu sempre me pego surpreso com a capacidade de sua música me “deslocar”. São tentativas muito verdadeiras de moldar sons tão densos em uma estética que “narre” algo. De alguma maneira, A New Life in a New Planet me soa como um desbravamento- uma única longa canção de quarenta minutos que tenta localizar espaços menos óbvios, localidades ainda não pensadas.

É por isso que A New Life in a New Planet tem uma sonoridade fantástica. É impressionante como uma quantidade absurda de efeitos variados em um mesmo instante consegue estabilizar marcas. Tenho isso como cenas na minha cabeça; cenas de dificuldade enorme, pois poucas coisas são realmente agradáveis nesse álbum. Se em Inverno tínhamos um poderoso solo de guitarra para nos orientar durante a passagem em um terreno nada hospitaleiro, nesse disco tudo soa como extraterrestre. Sons alienígenas tão surpreendentes como improváveis que invadem sem aviso algum qualquer zona de conforto. É por isso que insisto; ouvir cada álbum de Jobim é se surpreender.

Em seu bandcamp, Gustavo informa que esse trabalho é diferente dos anteriores, pois tem mais camadas e efeitos digitais. Eu me pergunto como foi o processo de criação, me parece que A New Life in a New Planet objetiva uma chegada bem obscurecida, se não inexistente. Eu nunca precisei de temas para ouvir música. Acho que é por isso que credito tanto a esse álbum. Há algo na música de Jobim que “só” ele consegue fazer. Não me refiro a tecnicismos como “densidade sonora”, musicalidade ou produção. Quero dizer que há certa “ordem” que não consigo identificar propriamente que traz essa sensação de “transe” durante toda a audição. Cada variação invoca uma nova imagem, de modo que temos uma justaposição bem ruidosa de elementos que se encontram nesse clima realmente “estranho” que Gustavo imputa ao disco.

A discografia de Gustavo está cheia de discos “climáticos”, ou seja, álbuns que nos deslocam enquanto ouvintes. Suas múltiplas abordagens refletem um artista interessado em não se repetir, e embora nós encontrássemos aqui muitos elementos semelhantes ao Tsunami, por exemplo, estes soam completamente autênticos. Repito, Jobim é um músico interessado em terrenos que não foram totalmente explorados, por isso as consecutivas audições de sua obra nos revela desbravamentos incessantes de diversos ângulos. Alguma força reside oculta sobre a diversidade sonora de New Life in a New Planet, mas ela sempre está tangível, sempre a deriva- como uma paisagem que ainda não vemos, ou uma localidade escondida atrás das árvores na beira da estrada.


O maior trunfo desse álbum é também sua maior, digamos, “inconveniência”. É nitidamente um disco difícil, mas realmente divertido à medida que vamos avançado. Ele parece que fica menos “escandaloso”, mas aquela estranheza inicial permanece. Ora, tamanha monstruosidade não era provocada pelo volume do barulho e pela soma dos efeitos, mas principalmente pelos sons que estes emitiam- um contraste gritante com o que estamos acostumados a ouvir. Algo difícil de encontrar mesmo nos recônditos mais profundos, algo novo.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Kamasi Washington - The Epic [2015]

É verdade que muitos (muitos mesmo) veículos trataram The Epic como um suposto “renascimento” do jazz, como se não houvesse uma vanguarda forte envolvendo suas ramificações e intersecções com outras sessões radicais da música experimental. Há de se realizar uma análise profunda de como é injusto o jazz ser simplesmente ignorado tantos anos (há apenas duas resenhas do Peter Brotzmann na pitchfork, por exemplo) e um jornalismo um tanto quanto preguiçoso eleger esse retorno pelo Kamasi. Sua participação, principalmente com rappers muito famosos, catapulta a atenção voltada para o The Epic. Mas aqui vamos tentar realizar a análise de The Epic tentando desconsiderar parte da crítica superficial, com o que o disco realmente pode trazer para o jazz contemporâneo (onde, repito, já existem diversos artistas realizando trabalhos extremamente relevantes).

Fica óbvio então que o jazz perdeu uma parte significativa do mercado, sendo seus representantes mais procurados músicos que abordam temas repetitivos desde os anos 80. É verdade que esse “deixar de lado” ocorre em todos os nichos musicais, mas no tocante ao jazz é de se admirar como nomes do livre improviso europeu, a intersecção com o “noise”, “drone”, etc, é reduzido a um público ultra específico, dificilmente alcançando mais que cem pessoas em um local de apresentação (e isso falando dos nomes já consagrados).

Pode-se ver que para “analisar” esse álbum é necessário uma visita ao que do jazz já foi realizado e tem sido realizado. Ora, o disco tem quase três horas de duração, autoproclama-se “épico”, e todas suas estruturas vem do jazz tradicional- a apropriação com estilos musicais étnicos, o órgão elétrico Hammond, a incorporação de riffs elétricos de rock, os tempos rápidos e as frases melódicas irregulares. São desenvolvimentos importantes e tecnicamente a aproximação dessas abordagens já caracterizam Kamasi como um grande líder de banda.

Todos esses desenvolvimentos (com ceteza ele ouviu muito mais discos de jazz que qualquer um de nós) não devem, no entanto, elevar The Epic para um espectro além-crítico. Acreditem, é um disco bem divertido e fácil de ouvir. As três horas de duração não intimidam nada. O interessante é que essa “crítica hegemônica” que li sobre o álbum não relatou praticamente nada das intensidades emocionais que este atinge às vezes. The Next Step, quinta faixa da primeira parte do disco (são três, no todo), jaz jus ao título- Kamasi sai de suas influências exercidas em todas as músicas anteriores (pode-se ouvir essas canções como homenagem ao Coltrane) para solar com grande intensidade- temos então o vislumbre do artista Kamasi, mais do que qualquer revisão cultura e musical. E nesses fundamentos que a parte crítica deveria se debruçar, é nesse “desabrochar” que podemos prever um músico muito mais autêntico do que as simulações anteriores (que não deixam de ser divertidas e reverenciais), que talvez alce o público do hip hop às possibilidades incríveis do jazz- não apenas meras deferências que soem agradáveis para os ouvidos. É bom prevenir tudo isso antes de escutar esse disco para que as pessoas não pensem “ Kamasi é superestimado” depois de ouvi-lo. É um álbum que fatalmente vai agradar as pessoas já inseridas no jazz, mas que talvez pare por aí. Aos muitos não inseridos que vão entrar por esse disco, ele é apenas um leve espectro das proporções neuronervosas que o jazz pode exibir.


Ao contrário de muitos, não vi radicalismo nenhum na proposta. E possivelmente não consegui cumprir minha ideia inicial de falar só do disco. Não é que ele não mereça, mas seu objetivo precisa ser visto de outra forma para que possamos aproveitá-lo em seu máximo potencial. Gostar de sua leveza, de como quase todas as músicas nos remete aos grandes discos de outros mestres. Minha dúvida sincera é se um entusiasta do jazz pós anos 80 iria achar algo de verdadeiramente impactante no trabalho de Kamasi? A já citada The Next Step e Miss Understanding me garantem que sim- embora ambos os momentos tão significativos possam ser esquecido após três horas simplesmente agradáveis- e é justamente em instantes assim que eu atribuo valor a esse disco. Pois a função harmônica, as assinaturas de tempo e as progressões de acorde dizem que está tudo devidamente no lugar na obra de Kamasi. No entanto, o que mais me impressiona é esses outros momentos, onde o próprio artista sai de sua ambiciosa zona de conforto para pisar num terreno onde a surpresa acontece.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

hateyourmusic - tenha bons sonhos [2015]

Gosto de falar sobre discos, aqui, “a partir” da percepção. Ou seja, como a música de tal artista realmente me atravessa e a experiência que esta me propicia. Acredito que isso seja mais honesto e não estou tão apto a falar de “gêneros” ou “tecnicismos”. Acredito que isso cega a conversa e o diálogo/rombo que a arte pode causar. Digo isso porque “tenha bons sonhos” perfurou minhas sensações desde a primeira audição.

“tenha bons sonhos” trata, principalmente, de problemas grandes. Problemas enquanto indagações numa escuridão profunda. Os signos que importavam tanto pra gente (o desmoronamento de uma casa) se dissolvem em desilusões presentes, onde apenas restam rememorações angustiantes do que se passou. São essas narrativas misteriosas e inconclusivas que ambientam o disco. Relações entre o que “está submerso” e a estética, onde expressar essas obscuridades se torna a complexidade do próprio discurso. Trata-se de colisão, as mesmas memórias que nos formaram são nossas fraquezas, e reparamos na nossa fragilidade, em afirmações tão simples ainda assim essenciais (“porque tudo é em vão”). É trazida a nós uma lamentação profunda e verdadeira de quem sente a vida (assim com suas fortalezas, sua segurança) escorrer pelos dedos. O que podemos ver, depois de tudo que passamos? Nossos sofrimentos e nossa tristeza não nos ensinaram nada?

O álbum é dividido em duas partes e a segunda, conforme o próprio bandcamp do projeto, é destinada para “relaxamento”. São duas longas faixas, que tratam de impressão- a figura da mulher que some na escuridão noturna. Mas diferente talvez da primeira metade do disco, há nessa segunda etapa uma “aceitação das ilusões”. Tanto que a ambientação aqui se torna preponderante, como se o “eu lírico” que habitava as canções anteriores fosse lançado para um local imerso em “aparições”. A abordagem mais onírica contempla uma espécie de vazio, há um deslocamento e não estamos mais em lugar algum, as indagações também não têm mais tanta importância. Há uma espécie de deslumbramento nessa manifestação, sua finalidade não é explicita- e sinceramente duvido que de fato tenha alguma “finalidade”. É quase uma exposição do “nada”, as transições de um local “vazio” para outro. Não por acaso o álbum tem o nome de “tenha bons sonhos”, se dormir é um espaço de tempo onde objetivamente coisa algum acontece. Quase um ritual místico para o “sono”, para que a tristeza de toda a primeira parte possa ser -durante esse período- esquecida.

Claro que esse esquecimento temporário não significa uma tentativa de fuga. Ao acordar vamos ter que confrontar com as mesmas merdas pendentes do dia seguinte, não há escapatória. Justamente por estarmos nessa prisão sem saídas, que devemos aproveitar ao máximo esses períodos “entre” os acontecimentos. A última faixa, “boa noite, punpun” é uma referência ao mangá Oyasumi Punpun, de Inio Asano, onde a personagem principal passa por uma série de situações que o força ser adulto, onde as pessoas tentam encontrar significado para sua existência, e no fim ninguém encontra um significado pleno. Aliás, “tenha bons sonhos” encaixa completamente no ambiente do mangá. As emoções que se contradizem, o ciclo que nossa vida se transforma e ainda sim uma realidade imutável, praticamente intransponível. Dessa morte inescapável, porém, surge a poesia, as iminências que atravessam nossas experiências e fazem brotar sensações que nos atinge na pele, potencializando nossas possibilidades, nossas angústias.


Toda essa sensação de prisão que perpetua a audição de “tenha bons sonhos” é de uma constatação de nossos limites físicos, sofrimentos psicológicos. Nós queremos morrer, nós queremos viver e é justamente essa diversidade (que muitas vezes nos esgota) que cava sentimentos mais profundos e sinceros. O hateyourmusic amplia seu espaço (o espaço “negativo”, o campo da “escuridão”) para valorizar as coisas que ficam retidas. Para evidenciar o massacre da realidade e se maravilhar com o vazio.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Michel Banabila & Oene van Geel – Music for Viola and Electronics II [2015]

Ouvir trabalhos como Music for Viola and Electronics  II é algo recompensador. A interação entre Michel e Oene, que se conheceram na Cloud Ensemble, entusiasma pela dificuldade dos temas propostos e como estes são tratados com a densidade necessária. O tempo é estendido e seu andamento lento provoca suspense, pela repetição dos sons eletrônicos, um verdadeiro drone, para inserções pontuais do violino que, mesmo tentando evadir essa estrutura inicialmente rígida, constrói em sua “prisão” versos verdadeiramente bonitos. A relação é expressa cuidadosamente, em uma lenta comunhão que muitas vezes se extravai para além da percepção conceitual. É um tipo de música que trabalha intensamente com conceitos, mas está primariamente fundada no que essa imersão extracorporal realiza com nossas percepções. Até a “entrada” na parte mais sinistra do disco, que se inicia na segunda faixa, é uma transição de modo que o último período da música se estenda para outra- estamos claramente falando de prolongamentos.

Os eletrônicos densos e meditativos de Michel são perfurados quando combinados para a viola, mas não que um tenha necessariamente função oposta ao outro. Muitas vezes a viola cria o ambiente também enquanto a parte de Michel soa alto, revelando influências do dito dark ambient e do noise. De alguma maneira, é como se toda a potência de ambos os espectros tentasse ocupar o espaço do outro, não em forma de disputa, mas uma compreensão de possibilidades e o que tais atritos podem efetivamente criar. É certamente algo que soa além da simples soma entre sons mais “clássicos” dessas diferentes abordagens. Provavelmente releva um espaço novo sempre que tal atrito é criado, e por desconhecermos (e só estarmos dispostos a compreender o que nos viciou), foge de nossa apreensão.

Banabila disse recentemente que essa é apenas uma evolução natural de sua música, mas é engraçado como um músico de seu gabarito, que desde 1986 vem produzindo um corpo sonoro muito importante para a música eletroacústica, considera “evolução natural”. Obviamente mais minimalista que suas outras obras e menos seletivo (nesse álbum, por exemplo, não há inserção de nem um sample), também abdicou de uma espécie de multi etnicismo para algo que se aproxima às relações de causa-consequência.

Esse minimalismo focal, porém, cede muitas vezes espaços para construções cinematográficas. A última faixa lembra muito ambientes interioranos, e Oene nos apreende com violino e viola, onde as cordas variam entre o livre improviso e música clássica contemporânea. Essa música é exemplo da dualidade e confiança da dupla- nela, ambos os espectros realizam o livre improviso e uma construção mais metódica. Não consigo capturar o conceito de Music for Viola and Electronics II, talvez pelo que mencionei no primeiro parágrafo; a dificuldade em reconhecer novos territórios quando uma arte de vanguarda aponta elementos tão limítrofes. Curiosamente, quando os músicos convidados são introduzidos, que toda essa elaboração fica mais assimilável.


Passando por toda a obra Banabila (onde Spherics talvez seja a mudança completa de rumo) temos contrariedades inerentes à visão complexa que um artista tem da música. Onde as expectativas possíveis se equivocam a cada lançamento. Mas repito, é um corpo sonoro poderoso. Eu indicaria Spherics como o melhor ponto de inserção, porque os direcionamentos de seus discos nos deixa sempre a sensação de algo realmente “grande”. Onde meros “formatos” são dissolvidos em prol de um caráter mais honesto em um lugar que as sensações ficam em primeiro plano. Ou seja, um compromisso radical com sua visão de vida, que indubitavelmente está em cada segundo de suas músicas.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Dead Limbs – Lighthouse [2015]

Caminhar pela cidade com fone de ouvido deve ser minha maneira favorita de ouvir música. Mas alguns álbuns realmente realçam a sensação de solidão na multidão, e aplica poéticas às coisas simples como as árvores quase secas do outono, uma casa velha com rachaduras em suas partes inferiores, as pessoas apressadas que entram e somem de nossas vidas em um piscar de olhos (literalmente). Em Lighthouse, temos essa sensação, de um tempo que fica suspenso entre a realidade e nossa reclusão. Esse autoexílio (que nos permite nos reconhecermos tanto em obras de arte) fornece os instrumentos que “perfuram” a objetividade abundante do mundo e nos permite reconhecer em cada ato íntimo uma construção maluca desse limbo que procuramos toda vez que nos fartamos do mundo.

Quando não toleramos mais; parece que tudo a nossa volta já é sem vida, já é opaco. Ouça os blast-beats e os berros em Dysthymia, de alguém que procura uma espécie de luz, mas essa luz imana dor e sofrimento. Entre a representação estética da banda (ambientes obscuros, densos e nuances mais “sonhadoras” que tenta devolver o equilíbrio a insanidade) e o “sentir-se sozinho” que mencionei no primeiro parágrafo, há essa trajetória de “derrocada da realidade”, onde tudo aparente incide que está se esvaindo, escorrendo pelos dedos que não apreendem nada de sólido. Como a impressão das vozes em Sacrilegium, obviamente algo quer se manifestar, algo oculto que está coberto (pela água, pelas ondas, pelo vazio?). Como acontecimentos de um passado que não se manifestaram livremente, essas vozes saem do mero murmúrio para cumprir uma melodia angustiada no final do disco, e o álbum justamente está nesse campo onde batalha o que está submerso e a reclusão que interroga a validade de cada ação externa.

É criado um fluxo onde as impressões mais distantes se fundem. Lighthouse é sobre reclusão e sobre contemplação, também. O Dead Limbs tem a noção de que existe, de fato, vida nesse limbo. E mesmo com letras explicitamente negativas, há o reconhecimento de que algo deve ser procurado. Não me refiro a algo que devolva o sentido às coisas, nisso as letras já expressam uma aversão completa, mas talvez sensações que possam infligir reações. O instrumental, com sua aspereza, nos forçam a reagir, não dá para não “sentir” nada. Mesmo que essa sensação seja demasiada abstrata, sua existência confirma o que está submerso. Esse é um tipo de música que reconhece a distância entre os abismos, a profundidade e escuridão destes, mas que vê na iminência da queda talvez nossa transcendência. Uma disposição e apelo para o “negativo” justamente por aversão a uma existência já massacrada pela nomeação, pela luz. É nesse ponto que eu quero focar, porque não compreendo isso como um simples niilismo. Aliás, simplista é algo que Lighthouse não é. Justamente pelas variações instrumentais e construção de um ambiente onde a vida inflige muita dor e ódio, mas é nesses relatos que existe a confirmação do sofrimento que podemos nos reconhecer. Lighthouse é o reconhecimento do limbo como um lugar com mais essencial, mais hospitaleiro.


Das várias bandas que podemos associar aos estilos que o Dead Limbs figura, Lighthouse é uma linguagem obscura de um terreno de espera. Onde o que está submerso possa preencher algo incompleto, uma entidade exilada demais desse mundo aparente para incorporar-se nessa insanidade de luz. Recolhe-se ao limbo, então, porque esse mundo já está saturado. E talvez devêssemos seguir o vazio. 

Disasterpeace - It Follows [2015]

Podem-se adentrar diversas temporalidades na trilha sonora que o Disasterpeace criou para o filme It Follows. Talvez porque é uma trilha sonora, mas o funcionamento de ambiências instantâneas e abruptas, que nos alçam a um clímax que nem poderíamos desejar, é uma espécie de terror verdadeiro. Nossas bases são fracas e serão corroídas por instantes mínimos que destroem tudo o que tínhamos por seguro. Então é gerado um atrito entre a realidade aparente (essa objetividade demasiada que ilumina o mundo) e uma movimentação interna que se relaciona com nossos demônios independente da posição do sol. O tempo da expressão em It Follows é talvez mais fidedigno a essa realidade interna indiferente às posições astrais. Ele pode sim ser escravo de uma subjetividade, mas é a expressão que se constrói sem esperar nada alheio. Talvez isso nem seja possível para Rich (Disasterpeace é seu alter ego).

Rich Vreeland cria seus ambientes para destroçá-los. E aqui tudo pode ser usado- percussão, vento, drones, guitarra, instrumentos de sopro, áudio de bits. A representação do terror é otimizada na maior possibilidade das vertentes, desde uma composição clássica a sons residuais que podem causar distúrbio. Assim, as surpresas são maiores também. A curta duração das faixas possibilita maiores abordagens e rasgos, de modo que pouca coisa realmente perdura em It Follows. Fica então a certeza da fragilidade, da queda iminente. Como em uma estação noturna, onde os faróis altos de um automóvel irrompem o ambiente para sumir em seguida, as elipses sonoras promovidas por Vreeland seguem a lógica de se estabelecer por pouco tempo. Não somos capazes de memorizar esses sons, mas a sensação deles fica registrada nas audições. Lembramos-nos do arrepio, da intensidade- mas não lembramos propriamente como essas ambientações foram construídas.

As faces do terror então desfilam pela grande expressividade que essa única sensação pode causar. Como se fosse uma metamorfose insana, a flexibilidade com que o Caos se adapta no decorrer do disco como uma coisa anômala sem identidade única. A monstruosidade não tem uma face apenas, então é necessário que suas diversas vertentes (mesmo que sejam paradoxais em alguns pontos, como música oriental tranquila/abordagem eletrônica insana) funcionem como engrenagens distintas nesse Sistema de medo, como uma maleabilidade perpétua. Em todos os instantes de “modificação” em It Follows, somos confrontados com o desconhecido, e é nessa manifestação que o álbum adquire maior intensidade e nos centraliza no cerne dessa condição monstruosa implacável.

Uma das maiores surpresas em It Follows, é como as abordagens que nos parecem conhecida e até certo ponto amigáveis, transforma-se rapidamente em criaturas bizarras. Como uma extensão mais “grotesca” dos trabalhos antecessores do Rich Vreeland, ainda temos aqueles ambientes mais meditativos, mas os efeitos escondidos (como em Pool, onde parece que há uma goteira na música) sempre trazem uma função mais “anômala” para a audição. Esse diálogo com a música ambiente contemporânea serve tanto para o objetivo principal desta, ou seja, nos “situar” em algum lugar, assim como meios para implodi-la em terror e desdobrar suas vertentes mais sinistras. É sério, é incrível como algo tão meticuloso transforma-se sem fissuras num harsh noise pesadíssimo! E essa progressão e consequente transformação, ainda que embalada em sons agonizantes, não perde a mão em drama e construção de clímax. Rich obviamente não consegue enxergar um universo tão simplista.


Com consecutivas audições, todo esse “caos” vai se determinando em um bloco bem planejado de “diversas expressividades” do Caos. Problemas mais profundos que um “horror superficial” emerge; identidade, localização, reconhecimento. Ouçam em um quarto escuro, para que todos os signos sejam mais “essenciais” e mesmo em seu inferno, mais belos.