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sábado, 22 de novembro de 2014

O horror em Concreto Morto - Viver-só [2014]

“Você acha que eu conto os dias? Há apenas um dia restante, sempre começando de novo: ele é dado para nós na madrugada e levado para longe de nós ao anoitecer.”
― Jean-Paul Sartre

Não há dúvidas de que a realidade é confusa e obscura. Às vezes, parece que há apenas uma reinante anarquia de acontecimentos sem sentido, impulsionados por forças tão abstratas quando um suposto “si - mesmo”. A construção sonora de Viver-só causa deslocamento perante essas disparidades tão obtusas e cruéis. O absurdo apaga o ser, fica a sensação de estar suspenso. Esse tipo de arte, para alguns, pode ser vista como um reconhecimento de ecos (muito gritados!) nessa espécie de limbo. Desde Mersault, a primeira música, a banda apresenta o ambiente conturbado que deseja sinalizar. Ficamos saturados em velocidade, agressão. Nós (os ouvintes) também temos que nos dedicar e tentar recolher as referências, reconhecer o terreno árido e (aparentemente) pouco convidativo.

Todos os sons que se entrecruzam num turbilhão que honra a tradição das melhores bandas de screamo (Orchid, Pg. 99, etc) se integram nessa totalidade disforme. Mas também acusam e apontam contra essa loucura! É como se o álbum, ao mesmo tempo em que representasse o transe psicótico da humanidade, dinamitasse (ou ao menos tentasse) as armadilhas da existência. Não é muito difícil, se você já caminhou pela rua numa dessas noites querendo sumir, reconhecer-se nos sentimentos de “auto-exílio” que as letras expõem. Sentimos o absurdo. Estamos inseridos nele! A realidade enlouquece. Não compreendemos muito bem o que sentimos, mas essas sensações primárias têm que, de algum modo, ficar registradas. Pelo menos eu trago tudo isso quando ouço Concreto Morto.


A concentração da desmotivação do Concreto Morto também mira em alvos e falácias capitalistas, como a ocupação urbana, por exemplo. Enquanto as músicas do disco são muitas vezes locomovidas pela mera sensação de “não pertencimento”, as revoltas sociais talvez indiquem um ponto de encontro com outros não pertencentes, mesmo que seja na sarjeta. A banda fala sobre os excluídos, claramente. Apagados do sistema pelos fatos confusos e ordens reinantes, Viver-só irrompe como um grito contra toda a opressão da besta que é a Vida, assim como seu sistema e meios de produção que desintegram qualquer esboço de humanidade. Mais do que “análises” políticas ou psicológicas, os gritos surgem como experimentados, dilacerados pelas instituições, em uma crise de ordem pessoal/social que parece não ter fim, conforme o tempo vai avançando. Fica a dúvida: existe alguma brecha para uma integração real entre pessoas reais? A diversidade de elementos dentro de um subgênero específico, as mudanças abruptas de tempo, em conjunto com uma bateria que não nos deixa respirar- são elementos que se revoltam e buscam por uma integração inaugural. A sinfonia do desolamento moderno. Um relato explícito das desigualdades, dirigido especificamente aos indivíduos “párias” da humanidade.

Viver-só é construído sob esses complexos. Porque a sensação de “estrangeiro” persiste onde nós percorremos, nos trabalhos idiotas que suportamos, aturando as conversas fiadas, quase como autômatos- nós personificamos Mersault, fazemos jus a criação de Camus e seu absurdo. A guitarra irrompe dilacerante, conduzindo uma avalanche de despejos, depois há uma recaída para pequenos momentos de pausa, curtíssimos interlúdios para o ressurgimento da pancadaria. A concentração da raiva se justifica nas letras, numa troca implorativa, que atenua sensações como aprisionamento, tormentas, destruição, desmoronamento e queda- como a torre na página 7 (do excelente trabalho de arte que acompanha o disco). Resultando no surgimento de impressões perceptivas pela lógica concreta- uma espécie de “leitura” de signos que antecipam um desastre imensurável conhecido como humano- que se ergue contra o estabelecido. Estamos ouvindo nossa ausência, nossa errância. Uma ruptura no enredo tecido de nossas seguranças. Alguém que sempre residiu ali, com um medo monstruoso de se manifestar. Por que o contexto que vivemos não tinha evidenciado ainda essa criatura? O álbum incita nossas partes quebradas e transtornadas a se expor.

Em Viver-só, ouço essas partes ocultas. Aqueles componentes de nós que ainda não é integrada ao todo arredio- por isso, mesmo com as claras referências à literatura e academicistas, o vocal irrompe em algum momento, “jogue fora seus livros!”. É por uma transformação de consciência, também- a vida cruel está aguardando lá fora e em algum momento vamos ter que sair para o embate. As citações podem sim nos estimular muito, mas nossas ações concretas que vão realmente dizer algo.

Fica a sensação de tempo suspenso, em contraponto à velocidade incessante das músicas. Por mais “estrangeira” que a banda afirma ser, há ecos e ressonância. Não há mais hora para comodismo. Não me refiro a um egoísmo apenas panfletário e ideológico, mas a certo modo de viver e encarar as situações cotidianas. Há uma espécie invisível de “mística urbana” (com as convicções instituídas) que nos oprime, como O Processo de Kafka.

Viver-só é um registro contra esse ciclo infinito. A expressão da desmotivação e descrença nos modelos de sistema vigente. A cada momento, nossa liberdade parece ser mais cerceada, sendo renegados a meros seres obedientes. Vivendo sob desígnios improváveis- deus, trabalho, livre mercado- a face humana fica coberta e impossível de ser revelada. Um jogo de sofrimento cínico e bastante cruel. Viver-só revela o futuro sombrio que nos aguarda, mas vamos simplesmente desistir? Mesmo com as centenas de coisas à nossa volta que tiram nossa vontade, se ficarmos estancados e indiferentes, aí sim, realmente, nada vai acontecer e a vida vai ser um período de espera eterno. Viver-só me desperta todas essas sensações, e é sem dúvida um levante contra a passividade. A realidade não se apresenta compatível com a vida que desejamos. Queremos “viver, e não só existir”. Por isso é importante o “dizer” do exílio. De quem não consegue “revelar” sua verdadeira forma para os outros, carregando a pressão de ser esmagado pela falta de “identidade”. Parece que tomaram nossa intimidade mais profunda. Por isso o tempo passado e futuro se bifurcam e tudo é confuso demais. O horror de não pertencer.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A coragem para cair em Ping Pong: The Animation

"Não há nada que eu não faria para aqueles que são realmente meus amigos. Eu não tenho nenhuma noção de amar as pessoas pela metade, não é a minha natureza.
― Jane Austen, Northanger Abbey

Em Ping Pong, a vitória não é romanceada. Uma sensação de mobilidade contínua afasta essas meras dicotomias de “quem perde ou quem ganha”. É como se a repetição dos confrontos não necessariamente transformasse as pessoas em entidades melhores, mas uma sensação de mutação constante sobre como agimos. Não é um fim objetivo; tudo termina e recomeça e não temos muito tempo para raciocínios lógicos (como em uma partida!). Deixa a impressão nítida de que todas as vitórias serão desfeitas, todo treinamento resultará em algo concreto e todas as outras possibilidades afrontadas pela perpetuação do real. Mas em cada retorno existe a transformação. Colocados sob pressão e racionalizações instituídas, esses regressos representam o que evoluímos, mas também um aspecto adjacente do nível de evolução que poderíamos atingir.

Ping Pong aborda o modo cruel que “as forças que operam em nossas vidas” são cinicamente distribuídas. Temas como; talento, esforço, disciplina e seriedade, operam dentro de cada indivíduo, e até que ponto um supera o outro é muito incerto. Principalmente quando de fato fazemos muito pouco do que desejamos. A namorada de Kazama diz, “seu pai tinha muita sorte em fazer o que queria”- este que não sabemos se suicidou-se ou se morreu em um acidente. Os paradoxos se destacam em Ping Pong. Há o menino que tem a certeza que vai ser campeão mundial e joga simplesmente para se divertir (Peco), Smile que via no tênis de mesa sua única escapatória para sorrir de verdade (e que vai perdendo isso com a idade, até seu apelido- sorriso- fazer completamente sentido inversamente), e não se sabe exatamente quais forças motoras que determinam quem é o “melhor” no jogo e, obviamente, na vida.


O fracasso é um tema recorrente da série. Na verdade, de todos aqueles garotos, apenas Peco prossegue carreira. São divisões muito tênues que nos caracteriza como indivíduos únicos lançados no mundo e é isso que Ping Pong busca acentuar. “Você é tudo o que você tenta ser até chegar a seus limites”. No primeiro episódio, alguém diz, “sempre há alguém melhor que você”. O show ratifica esse bordão, ainda fortalecendo, “do seu lado há alguém melhor que você, mais inteligente, esteticamente mais aceito”. A noção do próprio fracasso é fundamental. Mas tudo isso se restringirmo-nos às convenções sociais! A série também exalta que é um mundo repleto de possibilidades- quando o exilado chinês descobre que talvez o Japão seja realmente seu novo lar. Não é viver sem dor. É viver apesar de. É viver carregando todos os fardos que um dia pareceram impossíveis com a certeza preponderante de estar se fazendo o melhor possível.

É sobre acreditar nas pessoas. Ter empatia pelos seus limites. A dor é o que nos une. Por mais que alguém sonha, sempre vai ser impossível se ausentar da competição que o comportamento neoliberal estimular. Mas, então, o que fazer? Reconhecer as fontes de prazeres genuínos nesse caos.

Em cada prazer também há tangencialmente uma fonte de fracasso esperando. Mas não deveríamos ter medo de cair porque o sangue prova que estamos vivos. O chinês Wenge, que inicialmente odiava o Japão, perde e é obrigado a passar algum tempo com seus companheiros de equipe, e acaba se transformando num mentor da equipe, esta que genuinamente o admira. Um mundo de possibilidades anteriormente impensadas se abre quando observamos a ótica mais vasta do universo. Trata-se de ver além do que fomos projetados e, também, além de sonhos que alimentávamos- talvez por ingenuidade, por teimosia ou pensamentos unilaterais- para encontrar pequenas brechas na existência que nos estimulem.

Em Ping Pong, pessoas que inicialmente se viam apenas como oponentes e adversários aos poucos vão compreendendo suas similaridades e que são parte de um todo. Esses antigos inimigos adquirem empatia pelos seus próximos e deixam de vê-los como simples obstáculos, mas como seres humanos. Na partida entre Peco e Kazuma, este último começa a perceber o que Smile vinha em tanto tempo aguardando. Ao passo que a animação se desenvolve e a “vitória final” vai parecendo cada vez mais como um conceito infantil e simplista, nós nos deparamos com um desenvolvimento tremendo das personagens no que se refere à autoconsciência. Nesses termos, a estética de Ping Pong se parece muito com seu enredo- animações aparentemente pictóricas e desleixadas que vão adquirindo vida no desenvolvimento da trama.

Peco é o herói de Ping Pong e representa tudo o que a série quer dizer. Não porque ele não falha. Ele é o ídolo porque apesar de tudo o que acontece com ele, nenhuma queda e nenhuma derrota vai destruir o amor incondicional que ele tem pelo jogo. Ele “zomba” dos outros, não por se sentir superior, mas ele simplesmente deseja que as outras pessoas “voem nas mesmas alturas”. Porque o tempo voa quando estamos nos divertindo. Podemos voar com essa diversão também. Peco ensina, principalmente, Kazama e Smile de que todos os limites impostos surgem de nós. Nada precisa ser tão frio e o esforço não vale tanto se não há prazer. Precisamos repensar em nossa relação diante do que enxergamos como “dificuldade”. Precisamos encontrar as possibilidades ocultas e admirar o que é intrínseco em cada entidade.

Os pássaros podem voar. E embora nós não tenhamos essa facilidade, é nossa obrigação mirar o céu. E cair e levantar quantas vezes conseguirmos. E ter prazer em todas essas tentativas. Peco arriscou, ele era o pássaro preso na jaula, que surgia em certas tomadas em alguns episódios. Já dizia o Campbell Trio, “The day is coming, don't be afraid, and we all will be back to life.”. Ping Pong mostra os possíveis caminhos para esse retorno- amor incondicional, prazer em ensinar, alegria ao cuidar de flores. Estamos todos vivos porque há o gosto de sangue na boca. Ping Pong se estabelece no que podemos construir ao nosso redor. Porque os acontecimentos certamente serão bem desconfortáveis, mas já estamos lançados na existência e o aborrecimento é algo inerente. Algumas pessoas desenvolvem resiliência, outras continuam caminhando por aí até encontrar alguma paisagem que justifique a errância, outros ficam fechados em seu mundo e ali vão perecer. Das poucas pistas que a vida deixa, o que podemos concluir é que um sentido instituído ela nunca vai apresentar. Depende de nossa capacidade. Não a competência para vencer, mas a coragem para cair e beber o próprio sangue.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Gustavo Jobim & Visszajáró – Arrival [2014]

A abertura que os sintetizadores em Visitor (uma das melhores músicas do ano) propõem, pode resumir bem todo o conceito de mais um disco lançado pelo Gustavo Jobim, dessa vez com a dupla sérvia Visszajáró.

Embora ainda haja muitos sons na mesma freqüência, parece que Jobim decidiu expandir seus temas e os contra-pontos são desenvolvidos com mais “espaçamento”, enquanto ainda nos deparamos com as passagens tão habituais de signos sonoros que não conseguimos identificar claramente, uma espécie de aparição. Mesmo sendo decididamente experimental, há certos espectros sonoros que se fixam em nossa mente, apesar do minimalismo dominante. Curioso que certo “radicalismo” estético interaja com essas projeções e tanta coisa floresça daí.


Essa ambiência “obscura” criada pelos artistas, porém, abriga elementos eletrônicos que podem até ser considerados “dançantes”. Talvez Jobim não aumente sua base de fãs em função desse lançamento, e sinceramente duvido que esse seja o principal objetivo. Já estamos no ponto de afirmar que é algo “típico” de Jobim, o que certamente significa uma construção de uma obra muito prolífica. Certamente, em progresso.