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quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Astronauta Marinho - Menino Sereia [2015]

Qual é a música que um menino pode cantar para soar como uma sereia? Ainda faz sentido, na disparidade do contemporâneo, tentar encenar melodias “doces”? Menino Sereia pode não ser um álbum conceitual, mas em seus momentos mais etéreos temos uma dinâmica interessante: a manifestação lúdica através de ecos e delays, o som do mar se confundindo em uma paisagem que tenta, a todo instante, representar a “multiplicidade” urbana. Não se trata exatamente de um suposto urbanismo, mas há nessas articulações uma estética que denuncia lugares em movimento, uma música que recusa a inércia. As baterias precisas atrás de versos de guitarra que, quase sempre, preferem uma construção mais sóbria e acessível, construindo esse estranho “aconchego” nas grandes cidades.

Embora podemos, facilmente, relacionar o Astronauta Marinho com muitas das bandas que emergiram do “pós-rock”, uma especificação da banda nesse gênero seria tolice e uma espécie de redução. A integração entre piano e contrabaixo, em faixas como Xote para Goya, deixa claro o afastamento de clichês do gênero. Há aqui traços mais proeminentes de jazz e música eletrônica também- são reverberações que progridem em contraponto ao lado mais “clássico” do conjunto. O disco não trata de “desarranjos” e duvido que eles queiram trazer essa sensação em algum momento. É uma música assentada na celebração (à sua própria maneira, obviamente). Eles têm um acervo extenso e propõem direções curiosas nos andamentos da música, ainda assim caprichando na produção- o som das águas, os ecos mínimos que surgem apenas em um lado do alto-falante. É uma vibração de transformação fluída, sem forçar a barra. É um disco que eu facilmente ouviria com alguns amigos comendo batata frita e tomando cerveja e filosofando sobre nada. Toda essa manipulação de diversos elementos sempre deixa uma brecha, algo aberto para elementos psicodélicos, em uma interação que, com certeza, foi muito ensaiada anteriormente.

As passagens variam e saem da mera contemplação para estados mais físicos, mais urgentes- mais vivos. Embora seja um disco com muita “energia”, Menino Sereia é a busca de um balanço, a busca de qualquer que seja o equilíbrio entre o ruidoso e o contemplativo, entre as fáceis definições e algo mais ousado. Crazyneide é essa busca, essa alteração contínua entre estados divergentes. Curiosamente, como pano de fundo, temos um som meio “estranho” que não nos abandona. Reconheço esse eco, é aquele som mais estridente e alto da Intro. É como se o ciclo começasse novamente. Negord! tem sua ambientação calcada em versos de guitarras que se interagem em uma melodia própria formada por diferenças nas notas, no volume.


Menino Sereia não é um apelo a “técnica” musical, e sim quer comprovar um ponto de vista que encontra alegria na manifestação das coisas (dos sons, no caso). É maravilhoso que isso aconteça porque esse disco exige outras escutadas. Ele consegue radiar sem simples abordagens, ele consegue ser acessível enquanto não é “mais do mesmo”. Uma zona mística entre folclore, senso comum e experimentações sonoras gestadas na observação de um ambiente que simplesmente se desenvolve.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

SŎNAX - SŎNAX [2015, Seminal Records/2008, Creative Sources Recordings]

Se música é essencialmente representação, eu não consigo de forma alguma encontrar a essência do representado no SŎNAX. Obviamente que nada é tão simples, e nessa gravação temos uma estética que flui em micro dissonâncias onde a abordagem da experiência pode nos auxiliar a verificar essa falta de “núcleo” no som, podemos encontrar referências concretas mais que uma mimética, mas atravessamentos. Podemos encarar (apesar de certa “concentração” em instrumentos bem específicos) como uma justaposição de “elementos concentradores”- ao menos é o que parece “jardim dos seres e não seres”, onde há uma variação considerável de elementos que se intercalam e se justapõem. Ainda nesses surgimentos efêmeros de uma suposta “ordem”, não há determinação. Como nada é determinado, cada instante é crucial como uma palavra na poesia. É um espaço convidativo ao ouvinte, que tem suas perspectivas potencialmente ramificadas e talvez no fim ele se questione o que condicionou certa perspectiva.

São tradições paralelas que coabitam o mesmo espaço que o SŎNAX oferece- como nossa percepção recebe essas manifestações e como ela encara isso ao que referimos como “conceito sonoro”? Parece uma distribuição de sensações e desenvolvimentos tão característicos que rejeitaram sua matriz. Tudo precisa ser escutado, mas também tudo é insinuação de espírito, de intelecto. O SŎNAX não agride nossa intimidade, mas desloca em uma frequência e vemos como ela é frágil, equivocada. Tudo não precisa ser escutado, ainda assim continuamos.

E como ressoar, da forma mais honesta possível, esses atravessamentos? O próprio Takemitsu falava sobre transcender o corpo para permitir o surgimento da música. Mas a maneira ocidental de técnicas está pulverizada e é difícil encontrar o que não seja mera mimese de intelecto, ao mesmo tempo, “estudo para uma improvisação sem desenvolvimento” estimula uma reação espontânea, inédita. O desenvolvimento então não passa por uma “disciplina” e os ouvintes também são premiados por essa inauguração- o que acontece é um ambiente determinado a todo instante, aniquilando o antecessor, estabelecendo o seguinte, sem pausas. A noção de unidade é algo notoriamente mais estilhaçado, é algo que pode ganhar corpo quando as justaposições se iniciam e é algo que é dissolvido no isolamento de elementos sonoros. É um balanço sensível entre o desenvolvimento enquanto conceito e do isolamento enquanto liberdade. Nem todos “desenvolvimentos” são naturais, muitos poucos, aliás, então o campo se ramifica nessa pretensão- de respirar, de revelar expressões pessoais sem “intermédio” de algo que legitima o discurso. A fragmentação não é esse intermédio, mas ela própria a linguagem. A música não nos diz nada, ela não é nada, mas ela nos convida através desse espaço vazio.


SŎNAX é um período que sugere dilacerações com o espaço presente. É um espaço que necessita do ouvinte para qualquer coisa- significado, essência, ou o que raios sejam. As faixas têm o nome de “estudo” muitas vezes, mas, especificamente, não é nesse terreno que eu gosto de me debruçar e prefiro encarar “estudo” como um terreno de preparação para descobrir o que o som pode revelar. Para que os espaços vazios não carecessem de seres que não os habitem e não os celebrem. O compositor é o criador, mas diferente de meras convenções, ele não é um criador que estabelece significados- dele, “apenas” ocorre a distribuição do som no tempo e no espaço. O som é a expressão humana que irrompe essas medidas, ele é a desmedida. O objetivo de uma composição não tem que necessariamente ser claro, ele fica mutilado em rastros e experimentos, ele é dissolvido em avalanches instrumentais, ele também não é nada sem um ouvinte. Talvez o maior objetivo do SŎNAX seja forçar o ouvinte a criar um espaço ativo. Uma alquimia. O ouvinte tem que participar além da contemplação, essa contemplação tem que se tornar força. Não é como se eles não criassem nada. Eles criam um convite. Um gesto inaugural.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Jovem Werther- EP [2014]

Não há controle possível quando tudo parece perdido. A casa fica mais vazia, sair do quarto parece impossível e nós ficamos horas e horas lembrando tudo. Parece que nada vai ser bom novamente. Então, (quando a gente cria força o suficiente) ficamos andando a toa por aí. Esse EP é para acompanhar essas caminhadas. É um companheiro de travessia. Quando não nos reconhecemos mais em signos externos, todos desintegrados. Canções abertas para a dor, para recolher os resquícios. E o Jovem Werther tenciona seus elementos com uma carga dramática crua. Se você teve alguma experiência similar que a banda aborda em suas canções (eu, com certeza, tive) vai haver um reconhecimento instantâneo, alguma amizade para reconhecer na escuridão.

Escuridão essa que não é um “mundo perdido” ou qualquer bizarrice do tipo. Eles tratam de um terreno em que a insegurança somada com a saudade, coordena uma sensação de não pertecimento- o fim está próximo. É como se esse EP existisse para revelar o subentendido, ou estimular sensações que as letras sugerem. São lembranças destroçadas pela memória e que teimam em surgir como assombrações, numa espécie de “desentendimento contínuo” com o passado e a forma bizarra que sua sucessão instiga em nossos comportamentos, em nossas andanças. Podemos concluir que essa soma de frustrações como os gritos, os acordes (mesmo que numa produção mais ‘lo-fi’) designam um terreno obtuso, difícil.

E, abordando esses discursos íntimos bem pesados e auto conflitantes, eles fazem um EP que não envergonharia um I Hate Myself. Há as partes mais “oníricas”, endossadas pelas guitarras distorcidas em uma “fragmentação” de texturas e as partes totalmente cruas, onde a discórdia dá o tom e se imprime na contradição entre “andamentos bonitos x letras e vocais sufocados”. É amplificada nesse sistema, então, a sensação de inospitalidade. Veja bem, não é que a banda não soe como uma “unidade”, mas os atritos que as músicas sugerem apontam para o embate inevitável de quem não se sente confortável nessa terra e é “perseguido” pelo passado, pelas confusões mentais. Como se a certeza de unidade fosse, ela própria, desafiada pela vida real- não a toa que o termo “desespero” caiba muito bem para esse EP. Em algum ponto, o vocal afirma, “não que eu esteja mal/ nem que seja o fim do mundo”, mas percebemos que ele está se enganando, percebemos sua confusão. É o fim do mundo! Aqui, o que “está dito” subentende o “revelado no dito”. Eles não querem ampliar uma “diversidade sonora” nessa transição de influências que se pode perceber; eles agrupam instantes claustrofóbicos em signos onde esse terror possa se expressar. Trata-se de confusão mesmo, perdição pura e que parece muito difícil de encontrar um caminho de “retorno”. O que se fazer quando tudo bom “ruiu”?


Esse EP é sobre períodos difíceis, sobre tentativas fracassadas, sobre derrotas. Períodos da existência que todos passam (alguns sofrem mais, outros menos). Essa gravação inclui muitas perguntas e poucas certezas, um tempo de questionamento e volta constante do que “já se passou” e como esses momentos continuam a nos caçar, troçando e esmagando qualquer possibilidade de expectativa futura.  “Último Farol” sugere um fim bem complicado e doloroso, um adeus a vida cujo único “paraíso” é a possibilidade de não se viver mais. Ninguém quer forçar respostas ou algo parecido, mas todos esses momentos que nos caçam foram impressos em uma história e caracterizam uma vida. “Último Farol” então pode ser vista como uma possibilidade, daquelas que pensamos quando tudo parece tão frágil. O curioso é que tudo é sim, demasiadamente frágil, ainda assim algumas coisas são tão amplas e abstraem a ponto de recorrermos a elas quase sempre; daí os “parques do bairro” representam uma história e também uma tormenta. Tudo junto, sem dicotomia simples. Porque nada é simples, os momentos se reproduzem e se dissipam, ainda assim, de alguma forma, estão lá. E vamos voltar a eles, querendo ou não.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

D'Angelo- Black Messiah [2014]

Uma música nova do D’Angelo ressoando em algum streaming. De repente, os fóruns musicais começam a ressaltar a qualidade de Really Love (destaque do disco), pelo romance, insinuações e melodia cativante que se confunde muito com os grandes nomes da música negra norte-americana. Pequena amostragem que exemplifica bem a qualidade Black Messiah e os trabalhos anteriores de D’Angelo. Ressaltando sua criatividade e apelo vocal que fez notícia, mesmo nesses quatorze anos de ausência.

Ele só foi dar as caras e se amigar do rádio em 1995, com Brown Sugar, que teve um impacto fulminante, influindo bastante nos futuros lançamentos de um ritmo que incorporava rap, jazz, funk e house, sendo com certeza um “genre defining”. Mas o melhor ainda estava por vir e, em 2000, o mundo conheceu Voodoo, que tem uma produção muito polida e lindas harmonias, um álbum que pode parecer “quieto” na primeira audição, mas que imprime texturas em nosso imaginário sempre que acabamos de ouvir (pode parecer loucura, mas eu juro que não tomei tóxicos pra escrever isso). Depois de dois sucessos e uma carreira que obviamente mostrava uma evolução muito gradativa, ficou a dúvida de quando e como seria o novo disco. Faria ele mais do mesmo? Em Black Messiah temos a prova de que, embora não em uma inovação propriamente dita, o desenvolvimento de D’Angelo nesse intervalo de quatorzes anos se projetou para fazer algo diferente. Voodoo é sua obra-prima, já está lá, mas nesse novo álbum temos reformulações de seu ponto de vista musical, ao mesmo tempo em que sua voz deixa claro que ele permanece o mesmo.

Com o tempo passando, parecia que nunca mais iríamos ouvir nada de novo do D’Angelo. Várias foram as suposições no meio do caminho- alcoolismo, drogas, etc. Algumas revistas estreavam manchetes indagando  a localização do cantor. Doze anos depois, em 2012, ele estava de volta aos palcos. Mais saudável do que nunca, suas performances prometiam um novo e interessante lançamento. Ficou então a dúvida se D’Angelo manteria a fidelidade às raízes que o catapultaram como dos artistas mais impressionantes de sua época, ou se renderia aos modismos e representaria apenas uma adição intoxicada da indústria fonográfica. Surpreenderia ou não?

Mas então ele sumiu de novo e ficamos mais de dois anos sem ouvir falar do D’Angelo. Até que, no final de 2014, um álbum seu foi anunciado numa sexta-feira, uma música liberada para audição no sábado e o disco lançado no domingo. Eu mesmo não vacilei muito e fui logo atrás para ouvir o disco. Juro que, mais do que para “acrescentar” na lista de melhores discos de ano, me intrigava muito saber o que ele lançaria.


O que mais me chama a atenção no retorno do D’Angelo não uma antipatia de sua música com o que é feito no pop hoje. O que surpreende é justamente o contrário. Em Black Messiah tudo soa em seu devido lugar- o baixo, as guitarras, os sintetizadores, a bateria é precisa- em uma gravação análoga impecável. BM é um disco quieto e relaxante e pop que contraria as matizes das músicas que tocam na rádio hoje em dia. D’Angelo implode essas esquemáticas simplistas que grande parte da música popular decide fazer e apela para a simples iminência e talento de cada instrumento, assim como na integração do todo. É um plano bem simples até- mas o esmero que cada instrumento é aproveitado deixa maior ainda a sensação de máximo cuidado em todas as etapas criativas desse álbum. As composições são detalhadas e saem de um virtuosismo mais fetichista que muitas gravações análogas proporcionam para aproveitar não só a sonoridade de tudo que envolve o disco, mas também o ambiente que D’Angelo propõe criar. Obviamente que a escolhe do nome, messias negro, não é arbitrária.

A maneira como a voz de D’Angelo foi aproveitada também segue uma formulação bem particular. A voz, ao contrário de muitos álbuns que seguem essa linha, fica muitas vezes abaixo do peso do contrabaixo ou dos instrumentos de sopro. As letras, em muitos momentos, são indiscerníveis. Esse sub aproveitamento do potencial vocálico seria tosco se não justificassem as raras vezes em que o vocal é evidenciado em toda sua capacidade. Essas vezes, como em algumas partes da sincera Really Love, evidenciam que D’Angelo é sim o foco do disco. E justamente por ter todo esse poder e controle sobre as levadas que tangencia seu desempenho- os grooves dançantes, os refrões com grande influência gospel- que podemos dizer que esses catorzes anos de espera contribuíram em uma visão musical cada vez mais fluída e que tem um desenvolvimento constante.

E é dessa zona quieta que D’Angelo controla as constantes tensões que são dissolvidas em Black Messiah. Sejam em letras que abordem o ato sexual, as canções mais relaxantes com um clima decididamente atraente, em BM temos um artista que coloca suas variáveis emoções dentro da mesma música, estabelecendo e negando clímaces- um violão aqui, um assobio melódico ali, uma gravação de algum líder falando sobre Jesus. Impressiona como a banda pula dos temas para outros nas mesmas canções assim como varia os andamentos e constantes estruturas musicais. Isso faz de BM um disco denso que vai exigir constantes visitas, pois está tudo muito unido que temos que vasculhar bastante para encontrar suas enormes divergências ocultas por todo esse balé de ritmos. Varia; Black Messiah é um álbum dançante, politicamente consciente, sexy. O que também leva a questionamentos como, “que porra estava D’Angelo fazendo nesses catorze anos para esconder tamanha imponência musical?” Eu quero dizer, escute o desenvolvimento de 1000 Deaths, o ritmo funk, sua letra direta, até eclodir em um solo de rock’n’roll para voltar a ser mais pesada e grooveada novamente. Realmente não se trata de nenhum iniciante.

O que apenas ratifica o acompanhamento no nome da banda, The Vanguard. Mesmo com essas ricas texturas e envolvimento de ouros instrumentos, a base para todas as músicas é estabelecida na interação baixo-guitarra-bateria. O baixo faz um trabalho bastante alto e desconstruindo a própria atmosfera das músicas e lidera a banda instrumentalmente, muitas vezes. D’Angelo toca a guitarra em ritmos menos ofensivos e mais acolhedores, influenciado no blues e nos grandes mestres do funk dos anos 70. Embora exista toda uma fidelidade à construção da música negra norte-americana, é justamente por não deixar tudo tão “exposto” e combinar diversas dinâmicas que protegem a criação e lhe dão um ar de novidade.
Não apenas as influências sonoras, mas também as letras destacam toda a história negra. Sendo planejadas, mais ou menos, em 2007, elas refletem a situação de humilhação que a população negra- desde a brutalidade policial até os negros da “linha de frente” nos exércitos norte-americanos- sofre constantemente. Como mencionado anteriormente, o nome do disco não é em vão e D’Angelo considera todas as variáveis para mapear as sensações de impotência, amor, sexualidade, alegria e medo que a população que ele representa atravessa no dia-a-dia. A adoção dessa perspectiva não é realizada de forma panfletária nem idealizada, mas através de relatos de um eu - lírico que atravessou essas experiências. Fica evidente que é impossível o distanciamento desses relatos e também não é como se ele ambicionasse isso. O comportamento de todo disco transpira calma, mas um equilíbrio merecido entre todas essas batalhas duras da vida. D’Angelo não tem medo de explorar essa sonoridade tradicional e estabelecer o comando de seus direcionamentos estéticos.

Embora Black Messiah aponte mais direções que Voodoo, ele não avança tanto em algumas explorações- D’Angelo quis resenhar sobre quase tudo em quase todas músicas- e prioriza uma interação sofisticada entre os membros da banda, uma interação mais simples que relembra os melhores momentos de Brown Sugar.

Black Messiah então- por apontar tantos caminhos e habitar zonas que privilegiam uma abordagem mais relaxante, mesmo nas canções com conteúdos pesados- se apresenta como um disco, surpreendentemente, sem “pressão”. Depois da obra-prima que é Voodoo e depois de catorze anos sem nenhuma produção em estúdio, muitos esperariam um D’Angelo angustiado pela pressão. Não temos nada disso. Somos apresentados a um artista no domínio de sua técnica e intuição. Alguém que não se apressou para criar canções tão cativantes e ricas como às desse disco. Não há um destaque em Black Messiah. É sua abordagem tão ampla, ainda assim ressoando muito íntima e próxima de experiências pessoais, que garante esse disco como o único sucessor que a obra-prima anterior poderia ter.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

E A TERRA NUNCA ME PARECEU TÃO DISTANTE – VAZIO [2014]

Nosso corpo é o contrário de utopia. Enquanto nossa mente pode elaborar as teorias mais interessantes, viajar aos lugares mais deslumbrantes, nosso corpo permanece estático e limita muito as possibilidades de nossa vida. Aplicamos, então, segmentações que transcendem a realidade para criar algum afeto nesse terreno árido. Mas o que há além da realidade?

Muitos dizem que a explosão do que se convencionou chamar de pós-rock se baseia em “texturas que programam o lúdico”. Talvez, de fato, seja isso. Mas estou absolutamente convencido de que não. Quero dizer, ouçam a introdução de Janela Aberta, com suas ligeiras interrupções da bateria e uma distorção, contrastando com os versos limpos de guitarra. Mais do que “construir um ambiente”, o EATNMPTD faz um atravessamento. Não se trata de “música contemplativa”, mas de uma experimentação. Com certeza, essa tal de janela que está aberta deve ter muita importância para esses manos e é justamente por ter sentido isso (o bafo quente de um dia de verão? O vento frio do inverno? Uma árvore do outro lado?) que eles têm uma espécie de autorização para expor musicalmente as feridas que os atravessaram. Não se trata, então, de “contemplação”. Mas de algo mais forte e mais vivido também.

Se o EP de 2013 tratava de temas como saudade, nostalgia e decepções; Vazio aborda um limbo em que um vácuo ambulante coabita com nossa existência. O vácuo que aprisiona o corpo. Ai, desse vácuo, eu entendo abordar os discursos sobre “contemplação” no post-rock. Mas não de o ponto de vista mesmo narrativo ou de ambientação- mas quando nos sentimos tão fracos e imóveis- quando parecer que se mover é muito, extremamente difícil. É uma amostra não só do registro dessas sensações, mas também um companheiro para suportar essas horas. Eu mesmo, quando colo em algum show deles, fico todo sentimental. É tudo tão intenso e barulhento que meu coração parece querer pular do peito. São apresentações assim que nos motivam em uma semana ruim, quando ficamos distante de quem gostamos ou quando não nos sentimos queridos por ninguém.

É clichê falar sobre amadurecimento, mas em Vazio os temas apresentados são mais duros do que no primeiro trabalho da banda. As mudanças no tempo ficaram mais dinâmicas também. O que demonstra o trompete que encerra o disco. A audição acabou, mas as dúvidas permanecem. O repeat é necessário. Com certeza as respostas não vão surgir, já falei sobre o primeiro EP deles e de como é uma música baseada na incerteza. Obviamente, não incerteza artística ou sonora. Não, mas as dúvidas pulsam nas distorções e é essa sensação “o que vai acontecer” que Vazio, assim como o antecessor, transmite.


Vazio confirma o EATNMPTD como um das bandas mais criativas nesse país. Em um ano com lançamentos tão ruidosos e importantes como This Lonely Crowd, Lupe de Lupe, Huey e ruído/mm, o EATNMPTD consegue não ficar atrás e lançar um discurso muito próprio sobre o desguarnecido, livre de proteções fáceis. Aliás, se expor não é problema para nenhum desses caras.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Cássio Figueiredo- Diário [2015]

O “processo de criação artística” sempre foi algo que me fascinou quando eu comecei a ir atrás desse negócio que chamamos de arte. No entanto, desde que a Internet se mostrou (pelo menos para mim) como principal meio de transfusão de movimentos artísticos, esse mito foi se quebrando. Quero dizer, com essa emanação de artistas e músicas no sistema faça você mesmo, estabelecendo ruídos discrepantes com ambientações que anseiam por autenticidade, fica evidente que esse “processo” está cada vez mais voltado em uma manifestação estética interna. É isso que temos em Diário, EP que surpreende pelo seu movimento descontínuo e, de certa maneira, desconfortável.  O ouvinte cai em movimentos que se repetem, irrompem e se desintegram.

Esses movimentos ‘imperfeitos’ de desintegração atravessam estilhaços como espectros. São significados disseminados através de diferentes freqüências que evocam cada dia de Diário como um espanto- parecem dias longos, perpetuados pela manipulação de Figueiredo. Justamente essa percepção multiforme (os dias mudam, afinal) que destacam a singularidade desse lançamento do Cássio. Ele não insiste na saturação e extrapolação, mas desenvolve mini temáticas em cada faixa-dia. Dias rendidos em um diário.

Por essa questão de múltiplos atravessamentos que evito referir a esse EP como minimalista. Embora haja influências claras, cada dia aqui contém sua inquietação. Óbvio que se Figueiredo fosse fazer algo mais uniforme e fechado às mediações externas, ele lançaria uma ou duas longas faixas. Esse sistema completo que pode ser Diário indica a impossibilidade de um ciclo. Muitos ruídos se repetem aqui, mas o confinamento temporal em Diário é abandonado para a percepção afetiva de quem o redige. Diário é uma unidade na medida em que foi pensado pelo mesmo músico em um conceito e essa sensação de bloco único se desintegra enquanto avançamos nas faixas. A certeza de continuidade morre na audição e persiste no nome das músicas “Dia 1, Dia 2,...”. Eu posso estar interpretando isso completamente equivocadamente, mas a própria música reage contra sua pré-nomeação. Se não é um disco explicitamente de diversidades, suas recaídas e insinuações aplicam alterações abruptas nas sensações.

Não em um movimento convidativo, Figueiredo desafia o ouvinte a não ser só testemunha. Diferente, por exemplo, do que acontece em Disintegration Loops, que também é um processo de desintegração. A problemática de Diário se constrói com a mesma dificuldade que é passar pelos dias. Recaídas, explosões de blocos sonoros, uma melodia mais agradável que lentamente se transforma em uma espécie de sussurro fantasmagórico, alternações abruptas no volume. Em Dia 1, há uma mínima insinuação de desintegração na “melodia” que inicia a faixa. Em Dia 2, o bloco que terminou a faixa antecessora ganha mais vibração e continuidade. Os sons são descontínuos, outros ruídos são mais resistentes, o volume se altera novamente. O que faz um dia ser encarado como unidade, então?


Essa descontinuidade e incerteza que caracteriza Diário. Uma efemeridade enorme e sensações que não podem ser explícitas em medidas temporais. Temos um período, mas estranhamente, a música não trabalha para esse bloco de tempo. Ela revela outra coisa. Que tudo pode acontecer agora e que exatamente nada vai acontecer. Há a continuidade dos dias, mas uma inércia que justifica alterações abruptas e rompem esse conceito de linearidade. O anúncio de uma melodia pode morrer antes mesmo dela ganhar vida.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Gustavo Jobim – Inverno [2014]

"Eu me pergunto se a neve ama as árvores e os campos, que os beija com tanta delicadeza? E, então, os cobre confortavelmente, você sabe, com uma colcha branca; e, talvez, ela diz: "Vão dormir, queridos, até que o verão venha outra vez."
-Lewis Carroll

Frozen Lake é a faixa que abre o disco Inverno (meu álbum favorito de tudo o que ouvi do Gustavo até agora). Já fico arrebentado pela fragmentação que ela insunua- elementos densos e verdadeiramente ameaçadores! Sinto-me preso e sem saída, não há uma fresta possível. Jobim, aqui, não manipula seu som nos “convidando” a participar, é peso atrás de peso e dissonâncias que nos tonteiam, nos deslocam. Se Zone Of Silence é até que um refresco, embora continue cultuando a obscuridade que permeia todo o disco, Ice Age Coming e Permafrost (essa última com ventos muito, muito gelados) nos ratifica a sensação de imobilidade.

Penso muito num atravessamento de Vikernes e do Schulze, como se as feridas destes fossem também as de Gustavo e os três deram- cada qual a seu modo- um testemunho do lugar frio onde passaram. E pode ter certeza que é uma área bem inóspita. Assim que chegamos a Winter Song, porém, temos a certeza de que tudo iria se projetar nisso. Em seus vinte minutos, temos um relato trêmulo da passagem. Não sei se Jobim quis, de fato, inserir um contexto narrativo no andamento das faixas. O fascínio dessa música é que ela mantém aquela inevitável sensação de imobilidade das anteriores, mas apresenta possibilidades com uma melodia relativamente regular de pano de fundo. É nela que devemos seguir ou é apenas um oásis? Sussurros surgem atrás, sons cavernosos que se sobrepõem trazendo aspereza limítrofe. (Sério, tentem ouvir isso em casa com os headphones bem altos, parece que a redenção nunca vai ser possível).

Parece que toda essa ambientação quer nos engolir. A sobreposição e a invasão dos sintetizadores intrigam, nos balançam. É uma entrega passional o que testemunhamos. Um espaço farto de dissonâncias que exploram nossa capacidade e realizam a estética álgida. O que nós temos a oferecer a não ser essa integração impossível? Fica uma sensação de desmineralização dos encantamentos, onde só o que resta são fagulhas reminiscentes de algum outro plano menos congelado, talvez. A existência é rígida e Gustavo nos lembra disso. Em cada investida de Inverno, temos uma rigorosa catarse que se seguirmos sem pudor, levar-nos-á ao que menos suportável podemos encarar. Se eu vejo Inverno como um disco essencialmente negativo, não estabeleço uma negação primária de destruição ou qualquer besteira dessas. Falo sobre o atravessamento de uma espécie de satanismo da luz. Onde tudo tem que ser modulado e conforme o instituído- é uma obra dessas, com sua instabilidade total, que pode trazer o atrito necessário para perfurar esses elementos tão concretos, tão reais.


Esqueçam o inverno escandinavo. O frio ao qual esse disco que me arremessa é de tudo o que encaro todo dia. Inverno surge para lembrar que esse terreno inóspito, sem medidas e especificamente rigoroso, é uma abertura de tudo o que essencialmente existe. Os sintetizadores ampliam e nos apontam caminhos. Mais difíceis e mais puros. Para onde o vento sopra mais forte. Um mundo com muitas quedas que parece ser eterno. Onde qualquer amanhã é devidamente arrancado da esfera das possibilidades, curiosamente pela grande alternância de elementos que Gustavo coloca em sua música. O futuro é esse frio e esse vento. Essa agitação constante onde tudo ficará inerte.