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sábado, 20 de outubro de 2018

Esta casa vazia está repleta de memórias #2- Perto do Parque


Elliott Erwitt - ARGENTINA. Valdes Peninsula. 2001

Parte #1- Clique aqui


Quando tudo muda,as concepções temporais infundem-se como nuvens aglutinadas preparadas para a precipitação. E como só se acumula uma fileira de pressentimentos, eles depositam-se como reais, afunilando expectativas como únicas realidades. Estas que, antes do temporal, nem sequer existiam.

(um olhar que é só medo)

(um olhar que é só fascínio)

- Você tem de agradecer mais pelas coisas que você tem, cara- disse Diego.
- Bem, você diz isso porque tudo tá tranquilo contigo, né?- eu respondi.
- Você sempre acha que as pessoas não são tão noiadas nas coisas que nem você.
- Claro que não. Cê que acha que eu acho isso.
- Eu não acho nada. Só calma, porra. Vai se trancar no quarto por dias de novo não, hein. Pelo amor. Que cê fica fazendo tanto lá, hein?
- Eu fico lendo uai.
-...
- E cê sabe que eu gosto de criar. Mesmo que não saia nada. Fico digitando umas palavras, esboçando umas coisas..
- Escrevendo, porra.
- É isso aí.
- Experimentos criativos do doutor Justini... Mas cê tem, tipo, uma coisa específica, um projeto, um livro?
- Eu começo uma monte de coisas e uns dois meses depois acho que tá tudo ruim. Deixo de lado. Nunca mais volto. Cê é bom em terminar as coisas?
-Eu só sou bom pra ouvir música o dia inteiro, bicho. Mas isso não dá pra fazer. Cê ouviu o último trampo do Sean Bowie?
-Nem.
-Vai lá em casa qualquer hora ouvir, ou eu passo na sua.
- Tô sem caixinha de som lá.
- Eu vou começar a lavar uns pratos lá no municipal de Santo André. Dá pra por você pra dentro. Tirar uma grana extra e coisa e tal.
- Cê lembra se essa trilha dura muito mais?
- Acho que a gente tá quase lá.- uma brisa forte e gelada passou. Diego fechou os olhos e apertou a face- Melhor se preparar que este inverno vai ser foda.
- Eu vou é pegar meus casacos e torcer pra que dure a vida toda.
- Ah, pronto... Quando a gente vai voltar a ler aquele livro da Lygia? Aquele que a gente lia junto... O Quarto Verde? Não lembro o nome
- Acho que é Quarto Verde mesmo. Um de contos né?
- Isso

(ventos que me traziam à mente uma praça e um boteco na República)

Aquela felicidade de conversar com Di invadia-me e preenchia-me de maneira surpreendente. As árvores latifoliadas que fechavam a trilha, tornando-a quase claustrofóbica. As palavras sempre certeiras do meu amigo. Meio evasivas, talvez. Mas com certo tempo de amizade, a gente aprende o que os silêncios tendem a significar. Aquela inautêntica felicidade corajosa. Empenhada em interromper os sucessivos ciclos realistas, que executavam qualquer coisa como esperança ou afins. Aquela felicidade surgindo do assobio dos insetos, das frestas entre as árvores, do rio invisível que nos lembrava de sua presença através do prolongado chiado aquático. Para tudo aquilo não havia explicação. Era uma saturação de imagens e sons pacíficos que rendiam um bom plano de fundo a qualquer conversa entediante. Aquele coração não suportava tudo aquilo sem tentar expressar o enxame de possibilidades. De repente, o mundo abria uma fresta passível de preenchimento completo. Tudo era possível. E o medo que eu tinha -quer dizer, o medo da realidade- sucumbia. Ele ficava de fora, aguardando-me terminar a trilha para voltar a ser alguma coisa palpável. A noite passada ,em que eu vomitara nas paredes brancas e tirei minhas roupas para ver se o chão gelado conseguia acalmar-me, ficava para trás. Como se ela houvesse sido uma exceção e somente o amontoado verde-escuro sob um céu cinza existisse. Porque aquele ambiente seco e meu amigo eram tudo. Minha garganta ficara um deserto. Eu olhara assustado a parede inundada com meu líquido interno. A pasta dental com a ponta para fora da pia. Todas as letras que eu deveria ter dito embalsamadas no quarto num líquido fedido. (eu deveria ter dito que amava Di, que sua companhia era um alívio de tudo; eu deveria ter dito às pessoas em vez de esperar que elas adivinhassem os sentimentos que eu deixei subentendidos). O sentido perfeito dos assobios dos insetos voltava à tona de novo, mais vivo do que nunca, recuperando-me indiretamente do quarto e do angustiante fedor do próprio vômito.

Apesar de ser muito tarde, eu estava acordado e disposto. Determinado em procurar um emprego, em limpar meu quarto e pintá-lo. Ocupado ,pensando nos planos enquanto a profundeza da noite desafiava a claridade mercurial dos postes. E eu seria forte durante toda a primavera, porque quando se tem nada é possível ocupar o espaço com fomentações superlativas.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Última volta

Fidel Castro, Havana, 1964. Foto © 2017 Elliott Erwitt/Magnum Photos. Do livro Cuba by Elliott Erwitt, publicado pela teNeues.

Quando as chamas de ódio inflamarem a simples existência alheia, como predicado de liberdade individual própria, tudo isso já vai estar fadado a um obscurantismo medieval. A casa da diversidade se evidenciará apenas como rascunho mal feito de uma nação cujas tentativas acabaram sempre se esbarrando na aniquilação do outro. A debandada para a racionalização será em vão; os pesos das más decisões curvarão as costas da população, as pilhas de corpos já lotarão os loteamentos, a terra vai estar na mão dos mesmos donos e o medo se espalhará pelo ar como perfume de perversidades. Rostos empalidecidos pelas tentativos frustradas, pelos rebeldes perdidos nos porões ditatoriais, pela falta de coragem em enfrentar uma ameaça onipresente, que sempre se escondeu no mitológico "cidadão de bem". As fronteiras se fecharão, dizendo "pra vocês, que nos fecharam a porta tantas vezes, não".

Quando o livre mercado romper porque não aguenta a tensão máxima dos vexames nacionais, quando a própria essência em que ele se origina, da competitividade, mostrar-se como farsa e ver que suas regulações não sustentam suas premissas, que seu desenvolvimento sempre atenderá quem lucra em cima e quem lucra em cima quer construir um campo de concentração e lucrar em cima disso, tudo já vai estar fadado ao pretérito. Fundamentalistas não poderão orar porque na aceleração máxima do declínio, no próprio movimento-puro que é a submissão à maldade, a humanidade se corrompe e só se ouve desespero numa terra desolada. Pessoas sangrando em cima da histeria, esqueletos batendo continência para os olhos odiosos de Bolsonaros, Mourões e afins. Governando para ninguém e tentando escapar deste inferno-vivo que eles ajudaram a projetar. Eu juro por Adam Smith que vou perguntar se eles precisam de uma mão invisível.

Você diz que não são todos os policiais, que a maioria está disposta a colaborar e só está preocupada com o que vem acontecendo com esta nação. Você diz que não são todos os homofóbicos, que eles só estão confusos e mal orientados perante tantas notícias, tantos escândalos. Sim, você insiste que conhece alguém que conhece alguém que não é tão ruim assim. Então não há mais método possível para você aprender a não ser testemunhar o inferno-vivo que suas isenções arquitetaram. Tudo bem, sente-se e aprecie o inferno, os gritos, os corpos e a podridão que derrubam muros como espíritos maldosos debandam de Hades invadindo o plano material.

O desperdício colossal de energia, de tentativas de diálogos batendo em muros de desprezo e de ódio- a vociferação ,contra nada em especial, que ecoa no recôndito isolado do próprio mundo paralelo. O talento alquímico de transformar qualquer fonte em puro veneno destilado, oferecendo-o como reverência aos demônios que vociferam palavras desprovidas de propósito. Liberdade para os livres que ressoam em uníssono com esta visão hostil da existência! Esta vida linda desperdiçada em palavras rancorosas, em sistemas de autodefesa que inibem diálogo, em suspender insistentemente a existência alheia até que seu fiapo seja a única teia num desabrigado canteiro de aranhas. Desperdiçada na dissonância de nossas visões entorpecidas por você nunca ser eu e eu nunca ser você.

Deus, você está aí? É um menino incapaz de compreender qualquer coisa, falando diretamente de Lavras, Minas Gerais, onda nada acontece nunca. Você consegue ouvir minhas orações apesar de toda a discrepância cognitiva que nutrimos, apesar de toda amassa sedenta num falatório insaciável de verdades antagônicas e verossímeis? Você está aí, Deus? Você pode confirmar que era mesmo para eu estar aqui, que eu não fui acidente abortado num tempo impossível?

No dia em que o arrebatamento aconteceu, naquele cinzento 14 de outubro: um evento completamente esquecível, em que a abertura das nuvens não abduziu ninguém, e ficaram todos estáticos fazendo preces a um deus que recusava aquelas pessoas. As nuvens abriram-se apenas para engolir vácuo, silêncio e retalhos de uma humanidade erradicada em desentendimentos como motor propulsor à existência cotidiana. Nenhuma pessoa levitou, nenhum músculo sequer se moveu e o céu pôde agradecer por ter ficado imaculado da indignidade humana. Os cavalos coloridos valsavam no horizonte, livres do infortúnio de ficarem submissos aos infiéis fantasiados em discursos de benevolência e neofascismo. Cidadãos idiotas de uma sociedade fundamentada em construções históricas aleatórias, determinada pelo sectarismo de visões disformes.