CURTA NOSSA PÁGINA NO FACEBOOK

terça-feira, 26 de maio de 2020

de manhã parecia que a noite nunca era gélida

John Chiara
  
  Eles diziam que o tumor era a representação mais cruel do aqui e do agora. Eles disseram que ele tinha aproximadamente quatro polegadas. Eu não consegui, mentalmente, concebê-lo dentro dela.

  A cada dia ficávamos mais distantes como se nunca havíamos sido amigos. Como se não houvéssemos caminhado de mãos dadas nos parques negligenciados e pichados de Santo André. Como se não houvéssemos passado noites abraçados na sua casa do interior. Contra-intuitivamente, ela queria que eu não me machucasse tanto. Não queria me usar de muleta para sentir-se menos só e eu ficar tão sozinho quando ela morresse. Ela me escreveu uma carta todo dia (eu só fui achá-las depois que ela faleceu). Toda a dor some quando eu escrevo pra você. É como se a comiseração me desse esse tempinho para escrever. E uma miniatura cósmica, que também agora era um pedaço do seu corpo, assassinava-a aos poucos. Ela viajou com o pai e eu nunca mais a vi (viva).

  Os gestos pararam de ter vida. Eles são nada. São um espaço vazio. Lembra que a gente achava graça de quem falava "me sinto vazio"? É assim que eu me sinto quando o cansaço vem, na outra parte do tempo, é só dor. O meu corpo tá inconstante. Não me obedece. Pegar uma água é um sacrifício. Lembra quando ficava escuro em Ibitiuva? E você fazia alguma piada sobre filmes de terror, eu dizia que não tinha graça e a gente se abraçava pra ninguém ficar com frio? Eu tenho pensado muito naqueles dias.

  Ela não está mais aqui. E provavelmente eu não consigo mais recorrer às nossas memórias fielmente. Ainda me vejo com ela, sentado e sentindo o quê? Eu não consigo reconstruir aquelas cenas com alguma perfeição. Na parede, um retrato nosso: uma cadeia de montes lá trás, e olhos de jovens incertos que não poderiam prever a hecatombe.

  Eu leio suas mensagens mas não quero mais responder. Queria pedir desculpas mas não consigo me sentir culpada. Só estou cansada. As palavras são tão inúteis. Espero que entenda meu lado.

  Eu aperto o papel tentando me reconectar à sua presença.

  O espelho reflete meu corpo, cada vez mais pequeno, cada vez mais encolhido. Mas eu não sinto mais medo. Sinto sua falta, é claro. Falta do Gustavo, do Felipe, da Larissa...  A gente se protegia enquanto o frio não passava e de manhã parecia que a noite nunca era gélida.

domingo, 17 de maio de 2020

o grunhido das folhas mortas

  

  As árvores cheias como estranhamente não permanecem no outono. Folhas longas e compridas, penduradas no cinza de um bairro que cheira abandono. E passeamos por aqui antes de você ficar fechado do outro lado, exilado em seu próprio país, olhando com clemência para um mundo intolerante, vestindo um branco encardido com as mãos presas em uma camisola que lembra tudo (doenças, sujeira, loucura) menos sono.

  Agora dos meus quase trinta anos, eu ainda sinto sua ausência caminhar ao meu lado, como o grunhido das folhas mortas quando são excitadas pelo vento. Os vinte anos não voltam novamente, ficam presos na encruzilhada de nossas decisões ruins, nossas madrugadas bêbados que você tão distante, tão medicado e fora de si, deve ter contemplado justapostas às cenas que o cérebro cria quando fica encarcerado. Minhas quase trinta primaveras foram lances pueris, acontecimentos dos quais não me recordo: quando alguém próximo morre e qualquer instante é marcado pela imponência da ausência, deixando folhas secas e pálidas na guia de uma calçada esburacada.

  E desde que eu passei a prestar atenção nessas árvores florescendo, nossas caminhadas surgem mais nítidas, como um folclore em que a realidade é a dimensão mais charmosa. Quase trinta primaveras parece ter um pouco de valor. Sobre essas calçadas esburacadas eu irei ver os vestígios das folhas incipientes, que (ainda) não nasceram.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

dormindo sob céus estrelados enquanto os nossos rostos, jovens, envelheciam


  Eu acho que nunca disse o que devia ter dito antes de ter partido. O que eu realmente queria era ficar perto de todo mundo. O tempo que nós compartilhamos em nossa ilha. Os dias incríveis contemplando um horizonte que só se estendia.

  As noites nos bares que todos se conheciam. Os minutos preciosos em que rescrevíamos nossos passados. Os copos quebrados submergindo em sons de risadas, dormindo sob céus estrelados enquanto os nossos rostos, jovens, envelheciam.

  Eu queria voltar e ver o rosto de todo mundo. Eu faria qualquer coisa pra voltar a ver o rosto de todos os meus amigos.

  Em suas mãos você segurava a chave, na sua mão direita, a preciosa chave de nossa cabana escondida. Uma pequena nota que escrevemos, alheia ao tempo e a todas as outras pessoas que não nosso clube.

  Você podia ter feito o que queria, todos fomos embora e você restou aqui, tentando fazer amizades quando todos tínhamos partido. E agora eu posso jurar que te vi no céu, sorrindo enquanto eu abria, aos pontapés, a porta desse retiro esquecido. Dezessete anos depois de inaugurar essa velharia. Como nós brincamos aqui antes de tudo sucumbir, como nós brincamos aqui antes de desistir. Fingíamos saber tudo, fingíamos que seria para sempre e que a infância sobreviveria às mortes, às partidas, às indas e vindas.

  Se você quiser, eu nunca saio daqui. Se bem que é tarde demais. Eu passei a me importar tarde demais. Eu tinha o mundo e não sabia. Não sabia que não precisava de São Paulo e qualquer outro lugar era pura mentira. Vai levar um tempo pra decidir o que fazer com esse lugar. Está no meu nome e não sabia. Onde estão os rostos com quem cresci? Passou muito tempo e eu ainda não entendi como desaparecemos. Como perdemos contatos. Como o silêncio virou mais fácil. Como eu virei um adulto que sucumbe a qualquer lembrança perdida, de tempos da infância em que passávamos a tarde celebrando o que entendemos por vida.