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sábado, 12 de maio de 2018

poemas para as ruas pedregosas


  • NASCIMENTO

Foi a rugosidade primária que me expulsou da província natal. No eco da esfera noturna, eu descobri o acesso aos rios e córregos cheios que sempre demarcaram nossa província. Eles diziam que o mundo sempre esteve preenchido por um ruído branco, um fantasma da primeira intimidade que nunca pôde ser esvaziado totalmente. Isso foi o nascimento.

  • PREENCHIMENTO

Durante anos eu achei estar preenchido por um tímido sopro que me individualizava enquanto auxílio divino no mundo demarcado. Achei que desse elemento brotariam gestos inaugurais batizados pelo enigma e pela desmedida. Mas essa hipertrofia do negativo apenas foi outra alquimia da esperança. Veja , eu sempre estive tocado pelo sopro de um mundo preenchido.

  • ANGRA DOS REIS

Quando eu era criança eu soprava uma bolha e perguntava-me se era possível estar sempre no vazio daquela química. Quando a bolha estourou e o mundo apresentava-se envenenado , foi a lembrança do esforço na criança que interveio quando as noites aparentavam sufocar o menino esquecido. Foi só como espuma que eu retornei ao elemento essencial e recolhi os restos de um garoto assassinado em 1991 em Angra dos Reis.

  • ANGRA DOS REIS II

Eu não estive em lugar nenhum e nunca recitei um nome. Eu nunca desejei feliz aniversário a ninguém e nunca acenei um gesto de esperança. Em Angra Dos Reis, eu mergulhei no meio do oceano e descobri que o chão estava muito abaixo do nível superficial da água. Eu não sabia nadar mas um movimento involuntário trouxe-me de volta à superfície , onde pude reparar que peixes coloridos nadavam calmamente. Como quem nunca esteve pode voltar a superfície?

  • ENCONTRO (PARA M.)

Nos seus olhos azuis eu demorava horas. Como se eles fizessem-me voltar no tempo, eu acenava para o garoto-sem-família que trafegava pela avenida Paulista. Como se eles me fizessem voltar no tempo, eu acenava para o garoto-sem-destino no ônibus. Demorou quatro anos depois que você morreu para eu perceber que aquele passaporte convidativo não era um passaporte de entrada, mas um artefato sagrado capaz de revisitar o menino-oco dizendo que na companhia se faz morada e que habitar na distância é esperar um encontro.

  • DESRAIZAMENTO (PARA J.)

Seus olhos negros e as árvores altas do interior de Minas Gerais perseguiam-me sinalizando um extremo onde ambos habitávamos. Mas você sempre encontrou conforto nesta distância enquanto eu sempre admirei o outro lado do rio, onde a descida sinalizava uma curva de outro mundo-possível. Talvez porque você cresceu numa roça cercada de mato e eu na proteção da classe metalúrgica urbana. A diferença foi que eu nunca quis me sufocar no ar rarefeito do desraizamento.

  • COLÔNIA

Um arrepio me comoveu quando você foi partiu de Santo André. Você me ensinou sobre a arquitetura dos prédios que eu sempre encarei com desencanto e morte. Até os ruídos das avenidas soam como homenagem a teu eco em mim. Se as bolhas estouram e estamos arremessados no mundo, não é sem uma companhia que nos deparamos com o isolamento radical. Chame isso de sempre levar você comigo, mas é no desalento que a feiura destes prédios sempre me abrigaram.

  • NARRATIVA

Eu me auto-fabriquei em palavras excessivas vezes para narrar uma vida cheia de constelações. Acontecimentos e experienciais aniquilam uma narrativa sensorial e é satirizando da grande mentira do self que o abismo te encara de volta. Se não é possível, através das palavras, caracterizar o sopro de uma vida, através do recuo do estranhamento percebe-se a rugosidade do inato. Veja , eu narrei um mapa de intimidades e encontros fantasiados de exceção e negação. Como é possível negar o cordão umbilical que não forjou narrativa alguma?

  • COMPANHIA

As sombras das árvores no asfalto desenham interrupções de um caminho infinito. Os momentos passados renderem imagens inacessíveis. A imensidão da noite escondeu dois corpos encantados um com o outro. Meses depois o amor morreu e o que restou foi uma distância cheio de nada. Coisificados os afetos , as bolhas originárias tornam-se indistinguíveis. Reconquistar o acesso da intimidade é velar pela segurança da companhia

  • ATRÁS

Eu vi entre a janela da sala o pátio ONDE você morreu. Caminhei sob a chuva de abril, tocando seu chapéu e suas roupas. Eu perguntei quem você era enquanto você lia um livro no gramado. Talvez eu eu só queria sair da faculdade e permanecer em casa para sempre. As árvores estavam estáticas e a bagunça noturna aquietou a distância entre nós. Transportei-me para outro lugar quando observei os edifícios da cidade onde nasci apequenando-se à medida que o mundo ficava para trás.


  • CAOS

Eu te vi no hospital enquanto voltava para casa assistindo à cidade em decadência, os edifícios modernos sombreando nossos pequenos lares. O jardim onde eu estava padecia de espelhos aquáticos pois tudo havia secado. Nós abaixamos enquanto você me explicava sobre as emoções da experiência humana. Houve uma época em que desdenhávamos de tudo isso e também rejeitávamos a intimidade de uma cidade caótica.

  • AMOR

Eu olhei o mesmo jardim em que você correu para verificar se nosso avô estava morto. Você estava interessada em olhar os corredores e perceber se sua mãe estava em casa. Eu sentia o chapéu do avô enquanto você mostrava-me a cidade. Eu nunca estava interessado em melhorar e estava pronto para creditar meu dispersamento no desraizamento da minha vida amaldiçoada. Eu te vi no corredor, nós conversamos no jardim e antes de você partir você olhou-me nos olhos com esperança. Foi seu último recado no mundo e eu te amo por isso.

  • LISBOA

Andarilho sem passado, caminhando na esperança de reconstituir um corpo, de ser devolvido à criação. As ideias maltratavam-me, os passeios estendiam-se por horas até cãibras invadirem minhas pernas reclamando repouso. Lisboa, eu me restringi às suas pequenas casas para ratificar uma posição no mundo. Em que ponto eu nasci? Em que ponto eu vivi?

  • OUTRAS ÉPOCA

Estar desacompanhado era o existir mais frenético: a opacidade abria uma fresta e nas ruas de paralelepípedo podia-se ver frestas abrirem, convocando seu isolamento a uma tragédia mais branda, maior do que tudo isso. Eu olhava, absorto, para essas manifestações que escondiam uma verdade essencial: o messianismo no evento é um pastiche pra quem sonha com outra época.

  • LAR

Eu andava imenso pretendendo dizer os galhos secos das árvores e absorver o movimento das coisas em longas contemplações. Eu esqueci tudo quando fui arremessado na brincadeira da subjetividade e não soube nem proteger a não-morada por qual circundei nem os traços extremamente fracos que forjaram o lar.

  • INVERNO

A covardia da ausência de sentido perseguia-me pelas noites moribundas transitando pela cidade, com o peso de uma solidão abissal comandando meus instintos não permitindo que minhas mãos sustentassem um livro e que minhas palavras naufragassem em diluições matutinas. Foi na revisita do dia do evento que minha memória se mostrou falha; o farfalhar das folhas na praça vazia, sob a vastidão incompreensível da noite, soprou um retorno à continuidade. Que alívio ao testemunhar o inverno novamente.

  • LONDRES

Percorrendo o silêncio dos vilarejos , assisti a um pároco sumir enquanto cantava uma melodia de tempos ancestrais. Ele não perguntou se eu carregava uma história, mas se eu estava disposto a regredir a um tempo compartilhado e encontrar ressonância nas celebrações divinas. O sagrado da celebração aconteceu no primeiro dueto humano.

  • PERDÃO

meu ideal setia estabelecer o transe em que podemos nos acalmar. em que eu olharia para olhos odiados pelas projeções um do outro enquanto a paz invadisse os rostos com a calma de uma intimidade recém-brotada e pudéssemos celebrar o encanto de haver espaço, ar e fagulhas nos olhos redispostas a brilhar.

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