30. The Comet Is Coming - Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery
Ao acatar "música experimental", a tensão em definir isso pode muito bem plastificar estruturas arcaicas e limitantes. Eu recorro a essa tag (ou gênero, ou termo, ou cliché) porque a música do The Comet Is Coming produz efeitos contrários que se convergem em uma única paisagem multidimensional. O disco é abundante em suas estruturas porque estas abrigam muitos instrumentos que continuam redefinindo combinações possíveis. O disco lembra que o mundo aparente, tido como real, é só uma das múltiplas possibilidades ainda não acionadas, cuja nostalgia evoca uma poderosa alusão de outro universo a ser experimentado. Edificando uma narrativa que se sabota a cada canção, a descontinuidade visualizada aqui é a única capaz de fazer sentir vislumbres de um mundo tangente a este. Enquanto eu escutei o disco ao longo do ano, fui adorando o fato de sua caligrafia se tornar cada vez menos cristalizada e mais como curvas infinitas que se postergavam a cada audição. Trust in the Lifeforce of the Deep Mystery é um modelo de desenvolvimento cuja apoteose se dá pelo iminente processo de descontinuidade.
29. Maquinas - O cão de toda noite
Os agrupamentos dos estilhaços do paraíso
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O Máquinas expõe uma ansiedade lancinante demais para conceitualizar formalmente em uma resenha
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O abismo é a tensão nascida da incompreensão constante do Outro Bestial. "O jovem era o único herdeiro das desgraçadas fortunas noturnas".
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Em outro firmamento, no entanto, o Máquinas está livre e o cão recorrente é um companheiro na inauguração duma nova esfera terrestre habitável.
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28. FKA twigs - Magdalene
A inquietação palpita enquanto o mundo dissocia-se de qualquer imagem reconhecível. A FKA twigs pratica o exato instante em que o mundo conhecido deixa de estar por um triz e transforma-se num conglomerado de imagens opacas sob o neon infernal das paisagens neoliberais. Magdalene foi uma abundância de estilhaços construindo um escape afetivo ao qual frequentemente se recorre para reconstituir a força internalizada. O dissolvimento, ao contrário do que crê a cultura moderna e unificada pelo poder do capital, é a única forma de encontrar raízes originárias num mundo cujas imagens refratam o indivíduo enquanto interligam suas superfícies ocas. As supostas causas não são superiores à aparência iminente, mas é na desconfiguração de um si categorizado que a artista encontrou seu ponto estético. FKA twigs redirecionou a disrupção contemporânea em uma nova forma de esperança.
27. Matana Roberts - Coin Coin Chapter Four: Memphis
Santo Agostinho expõe o amor como uma desmedida, algo que seria o oposto às aparências quantitativas. Entrevê-se nesse colosso a controvérsia como uma força passível de ser amada. Essa classe de oposição é o que alavanca a obra de Matana Roberts durante toda a década passada como um dos corpos discursivos mais impressionantes em toda a música. As memorizações dos ancestrais aqui são dilaceradas, misturadas e potencializadas pelas sessões de livre improviso. Essas reminiscências tornam-se músicas para não serem esquecidas e constantemente renovadas pela força do corpo que ainda vive e urge contra a morte e o massacre. Apesar disso, Coin Coin Chapter Four: Memphis apresenta a expressão musical como algo intimamente ligado à carne subsistente, à carne que é herança direta dos antepassados e capaz de contar as histórias de opressão. Bem dela nasce uma força convergida por um corpo novo que é um monumento vivo da história. Achar a música impossível que seja uma representação de todas as modalidades temporais enquanto estas acontecem.
26. Saskia - Pq
Em 2019, o aumento da agressividade, representada pelo nosso presidente, mas constantemente afirmada por uma parcela considerável de nossa população, só poderia ser ferozmente representável num álbum como Pq. Pq é drástico porque busca nas enfermidades de determinada condição de vida a agressividade para romper o ciclo de violência e submissão. O álbum é carregado de momentos autobiográficos que escancaram paisagens psicológicas degradadas pelo contexto em que nascem. Qualquer um acostumado com o "rap convencional" pode estranhar um pouco, porque são ruídos e manifestações escarceadas que rompem estruturas lineares. Mas enquanto Pq exacerba na escolha de samples e de musicalidade, assusta muito seus apontamentos: é o diagnóstico deste momento.
25. Cloud Rat - Pollinator
Uma ação prática de insubmissão contra as opressões materiais: isso é Pollinator. Começando com apontamentos que dialogam sobre você perdido em meio a esse caos, o disco transfigura as correntes, desesperadamente buscando meios para cerrá-las. Então a luta, ainda que pareça limitada pela falta de movimento, é contínua e tácita. Porque o mundo já te acertou tantas e tantas vezes que é necessário buscar uma maneira de revidar. Ecoar lutas antigas, sugar a energia dos que já se foram, e batalhar e batalhar e resistir e resistir.
24. Jai Paul - Leak 04-13 (Bait Ones)
Por um lado, Leak é como uma contínua dança que se entrelaça com a biografia musical do seu criador. O caráter artístico de Paul é tão dinâmico quanto o ambiente que cerca, emana música diretamente dos ouvidos mais criativos da "cena" da música eletrônica. Há uma excentricidade em suas manipulações que deixa as produções como pastiches ambíguos e homenagens escancaradas, como uma colagem que reconhece os ídolos e se permite zombar dos mesmos. Por outro lado, a coreografia ordenada, altamente disciplinada das composições, instala um campo sonoro em que a projeção de imagens também segue uma transparência metódica. Leak não é uma classe específica nem outra, mas soa mais como um dançar sozinho sob as próprias experiências de mundo. O que não manifesta um esoterismo, mas uma noção clara de que é possível sequestrar samples e acondicioná-los internamente numa criação própria. As letras trazem livre associações simples e concentram-se mais como elementos que suportam uma miscelânea dançante e introspectiva enquanto registro autobiográfico. Leaks é opaco esteticamente, porque a saturação de sons e harmonias, ainda que disciplinarmente orquestradas, é intransponível. Mesmo nos ensejos mais brilhantes e harmônicos, Jai Paul permanece em seu cárcere.
23. Steel Tube Room - FOSCO 6EQUJ5
A integração da melancolia com outras partes mais "suaves" da vida parece ser a tensão principal do disco. Eu nem conseguiria articular a impressão que este álbum me deu ao ouvi-lo sozinho no meu quarto em noites insones. De alguma forma, ele trabalha com elementos antagônicos e redistribui, em ritmos calmos e suaves, um caos que parecia ser impossível de se manifestar que não por ruídos e agressividade. Como se o instrumental acorresse ao ouvinte, disseminando as tensões de uma vida exaustiva. FOSCO é o Steel Tube Room advindo a um acordo com o próprio fato de essas emoções existirem. Não é um atalho para a redenção, mas de mesmo como a estrada do fardo e do peso pode contar com vislumbres acolhedores. Conforta porque sai da manifestação mais comum desses sentimentos e redimensiona-os e aceita-os. E nessa época em que esbarramos com excrementos por todo o lado que vamos, em que a esperança parece uma tola coisa infantil, ajudou. É esperançoso que sinais de beleza e desolação ainda possam ser produzidos na época em que vivemos.
22. LINGUA IGNOTA - Caligula
Os lugares-comuns da música eletrônica, da música clássica e do noise podem ser devastados se assim se desejar. Acontece que modismos de autoajuda têm se incorporado em tais nichos e produzido discos demasiadamente plásticos, parecendo resultados de um entrecruzamento das hashtags favoritas de fantanos e pitchforks. O disco da LINGUA IGNOTA é um alexetério contra as produções farmacológicas impulsionadas pelo algoritmo do spotify. A obscuridade agressiva de CALIGULA surpreende porque é extremamente verossímil, palpada em traumas reais que não poderiam ser expostos de outra forma. LINGUA IGNOTA cria um espaço em que a violência não é apenas exposta, mas também expõe sua enunciadora: do auge de suas dores e agonias. Por cortar através de diversos episódios, LINGUA IGNOTA foi sensível o suficiente para compor um dos álbuns mais fantasmagóricos dos últimos tempos, poupado em uma dor tão profunda que não há nenhum processo de cicatrização aparente.
21. Little Simz - Grey Area
As canções da Little Simz carregam uma dualidade de amplificações sonoras de uma excelente produção e aspectos desolados, extremamente introspectivos e reflexivos. Grey Area soa como o início de um terceiro capítulo possível, um híbrido discursivo que relaciona as duas partes de modo que se tornam inseparáveis e não identificáveis. O cômputo é de seu trabalho mais resoluto e decidido, fruto de uma autoestima importantíssima pra sobreviver às histórias que ela conta. Não é que nos EPs e disco anteriores faltavam alguma coisa, mas Grey Area parece contar as respostas necessárias, tanto líricas quanto sonoras, às perguntas que as produções anteriores deixavam.
Freddie Gibbs alastrou ainda mais sua corrente lírica, cobrindo assuntos variados de todo o EUA, com uma produção primorosa de Madlib, incluindo cortes bruscos no meio das canções, o que impulsionou um álbum de muitas histórias curtas justapostas. A sensação é de uma musicalidade fluída, com letras construídas por um observador-ativo no contexto em que vive. A colisão de diversas correntes temáticas não poderia soar mais variada e necessária, à medida que as ambivalências somam para completar um painel tônico que ambos os artistas têm construído nos últimos anos. Assim como compuseram algumas das canções mais divertidas do ano, a dupla confiou em nossa inteligência para estender percepções e observações (sonoras e líricas) que jamais soariam redundantes no corpo sonoro que vêm solidificando.
Céu continua com sua excelente produção, só que dessa vez há certa investida para desconstruir a própria atmosfera que o disco inicia, como se fosse um trabalho cíclico que poderia ser alçado ao infinito e reproduzido, de maneira diferente, diversas vezes. Muitos artistas tentam administrar o andamento de seus trabalhos como o curto-circuito proposto por Céu. Céu canta com suas letras reduzidas, meios clichés é verdade, como pequenas anedotas para uma proposição que esboça algo mais transigente em sua discografia. Isso foi um disco sobre uma pessoa tentando sair da redoma que em parte foi construída por ela, em parte deu nascença à própria artista. E posto em prática, é um exercício para, quem sabe, uma década em que ela pise fora do terreno sobre o qual seus excelentes álbuns anteriores se debruçaram.
Com outro disco cheio sob seus cuidados, Tyler solidificou uma obra de profundas e divertidas autoanálises que, aparentemente, quer abarcar vários nichos musicais e transparecer, através dessa simulação, a complexidade dos pontos de vista do artista. A virtuosidade de Igor é fazer com que esses sons sofisticados e polidos ressoem na audiência de modo a convidar o ouvinte a pressentir a subjetividade do músico como algo único a ser experimentado e compartilhado. Há uma teatralidade justa, incisivamente constituída a partir da aposta de Igor como um retrato íntimo sobre relacionamentos, identidade, términos, LGBT, afetos, exuberâncias, esperança, agonia, introspecção, ritmo, paixões agridoces, romances e melancolia. Para o músico que Tyler é, e mostra querer ser, cada passo seu nos últimos anos tem sido essencial para reverberar que um dos artistas mais polêmicos do começo dos anos 10s abandonou a veia de negação e começa a afirmar coisas poderosas e bonitas sobre a música e, em última instância, sobre a vida.
Você sabe daquele tipo de música que nós crescemos ouvindo, mas que vinha soando datada pela massividade midiática, pelas ideias repetitivas que se desgastavam e, também, por você começar a se interessar por outras coisas e perceber que o mundo musical é suficientemente rico pra desperdiçar com coisas que você não vê mais tanta graça? Toda toada de Planeta fome reverbera como uma transposição de desenvolvimentos desgastados para uma revisita energética a um rock meio de galeria contemporânea meio de garagem, aberto ao samba e à MPB. O resultado foi de uma familiaridade renovada em arranjos e cantos roucos. As partes de protesto se aglomeram ao amplo corredor de transposições e as partes fixas começam a sambar sem que sejam forçadas para tanto. Tido como um todo, o álbum personifica a capa (de Laerte Coutinho) como uma emanação de símbolos ao quais se recorre quando a contemporaneidade perdeu sua força de especular e resistir. As excessivas fontes de criação provam que a cultura em que se está inserido nunca está totalmente enxuta, estando sempre disposta a redefinir as estátuas mofadas em algo ativo e diligente.
Agredindo com ritmos hipnóticos que parecem com uma tentativa de abandonar o cárcere de várias camadas, Hiding Places sedimenta o caminho dos músicos como uma das coisas mais importantes rolando no hip hop dito "underground", emitindo uma série de sons contidos, como se estivessem prestes a explodir, mas mantendo o instante de "à beira do abismo" pra deixar a engrenagem lenta rolando. Se eu estou parecendo ridículo aqui, é porque eu encarei o álbum como uma constante renovação que não precisa de uma erradicação total para se reconstituir. Ainda há coisas boas em meio ao caos. Como um Phillip Glass do rap moderno, desempenhando um sub-discurso que, à primeira visita, parece alienado da realidade sonora. O movimento aspiratório de Hiding Places é renovar através da manutenção do foco no ritmo como uma revolução que lentamente constrói um corpo pronto para a resistência.
Hallucinogen soou como uma viagem profundamente ligada à organicidade da terra. Blut aus Nord criou sons que se interligaram a uma concepção dos elementos naturais como potenciais mudanças bruscas na perspectiva de como se observa o tempo e os seres circundantes. Essa composição atravessou o simples campo discursivo de estridência, sobre o qual o black metal se debruça tão recorrentemente, para tentar fazer os instrumentos e as vozes soarem como ritos de transcendência. E foi muito divertido ser absorvido por tais construções, ficar totalmente entregue à refração de percepções possíveis a partir do minuto que se inicia o disco. Novas configurações são possíveis, e isso é algo muito poderoso quando se trata do black metal trabalhando para objetivos diferentes dos quais, teoricamente, almejava. Uma nova coreografia no arsenal de trabalhos de uma banda que não cansa de olhar para o mundo de diferentes ângulos.
Everywhere at the End of Time é a obra derradeira de uma das séries mais impressionantes (senão a mais) de que se tem notícia na música mundial nos últimos 20 anos. A assimetria com outros discos de música ambiente é tão grande que este disco deveria ser colocado numa outra prateleira: a do diagnóstico do esquecimento, de como os fantasmas ficam cada vez mais presentes com a chegada da morte. O sono que chega, isso se percebe desde o primeiro instante, não é a dormência tranquila, mas a própria morte se manifestando como imagens borradas e irreais, corrompendo o cérebro a ponto de deixá-lo demente. A derrocada perpétua que se instala é de terror, do labirinto do tempo que propaga a entropia universal em seu corpo, em seus excrementos, em sua voz. Tente ouvir sem ser assaltado pelo desgaste e pela desolação de quem vive num passado esquecido, obscurecido pelas ruínas cadavéricas. Quando seu cérebro deixa de ser seu confidente e não há tipo nenhum de resgate para o esquecimento total.
Eu lembro bem a primeira vez que ouvi Syntheosis. Em um ônibus para Santo André, eu ouvia o disco enquanto lia um romance da Eleanor Catton. Em alguma festa em Santo André, uns dois dias depois, eu tentei falar com os meus amigos "avançados do jazz" sobre a minha experiência absolutamente única ouvindo o disco do Waste of Space Orchestra. Eles sorriram e desconversaram, desacreditando que o metal era capaz de novas abordagens (curioso que meus "amigos do metal" acham a mesma coisa do jazz, rs). Afortunado fui de eles cagarem para o Waste of Space Orchestra. Pareceu justo para mim que aquela viagem de oito horas fosse uma experiência intransferível, que deveria ficar fechada no que ela significou para mim. Eu não tô aqui tentando causar expressividade prum momento meu, tenho certeza de que todos têm isso todos os dias. Eu me empenhei para ouvir Syntheosis novamente para escrever isso daqui, mas eu não consegui. Uma pena que eu não chegue "àquele momento" apenas mais uma vez, mas eu estou muito feliz de que alguns seres humanos foram capazes de possibilitar isso.
Nós conhecemos o motivo do porquê de tantas canções "ruidosas" este ano: nós precisamos de ouvir a cacofonia cada vez mais presente no mundo de ansiedades e aceleração. O álbum correu o risco de ser interpretado como puro barulho, mas, sinceramente, não podia ser ouvido assim, não nos dias em que o barulho é uma espécie de silêncio e a harmonia são comerciais chatos de bancos de investimentos nos anúncios do Youtube. Nós compreendemos mal, inicialmente, o que estes ruídos dissonantes coreografados significavam. Mas uma espécie de fantasma subsistiu. Ocorreu-nos que havia um tipo de substrato que resistia à vontade de "não ouvir esta merda de novo". Nós paramos de tapar o ouvido e demos uma chance. Uma última chance. (não sem antes ouvir a discografia de uma banda de pop punk e cantar refrões idiotas para comprovar que ainda podíamos sentir algo semelhante ao que aqueles adolescentes sentiam). Por vezes, podemos perceber o álbum inteiro engolfado numa música (Death Drop) e perceber que todo o universo do disco é uma expansão daquela única canção. O resultado foi que aceitamos as cadências quebradas, os deuses da harmonia abandonados e os sub-gritos eletrificados por altas voltagens. Uma canção dum pássaro virtual que brilha através das páginas de carregamento e berra através dos alto falantes com mau contato. O sol artificial de algum fórum do reddit brilhando em 8 bits. Pode ter se realizado em um quarto quente e abafado do interior, em uma caminhada com o cachorro, mas a questão é que presentificou uma expansão do universo difuso, o universo do mau contato. Passamos a considerar Violence Mild como a única resposta artística ao tempo em que a profusão de ruídos dominou o mundo sensível. Ascendendo como os assuados que em breve estarão mortos, percebemos que há um atravessamento artístico que consegue dar ao caos disperso uma profundidade passível de se relacionar.
Os passos lentos com que Angel Olsen anda estão ficando cada vez mais fatais e sofisticados, banalizando qualquer outro abafamento que não sua expressão enquanto transita. A andada não é para admirar ou contemplar o mundo, mas pra fazer todo o entorno ser tomado pela sua subjetividade dilacerante. All Mirrors não foi um disco de espelhamento, mas a necessidade de incorporar cada imagem refratada para, enfim, poder superá-la. Assistir aos enterros de várias projeções de si. Sua bionomia é composta por percepções fugazes, bastante trágicas, que tornam um inferno a própria identidade a que se referenciam. Pormenores são tomados como inimigos potenciais e examinados com a interpretação sempre hiperbólica de Angel Olsen, como se este fosse o seu palco e a peça fosse o manuscrito de toda a sua vida. A racionalidade dos anjos esbarram na iminência do desespero com que ela performa sua canção, como se Angel Olsen lutasse com toda a sua energia para expurgar os demônios cíclicos que já percebeu em sua vida. É um convite bastante sugestivo para você perceber quais imagens de si quer expurgar para sempre e tentar sair exorcizado disso tudo.
O disco de Siba foi um esforço consciente no preenchimento dos espaços a partir do engajamento, do discurso e do som. "Coruja muda" foi criado como um enorme questionamento da própria obra que o artista vem construindo e o resultado da tensão de buscar novas saídas para um corpo de trabalho já riquíssimo. Desde o lançamento do disco, a impressão do investigamento nas imperfeições é ainda maior, como se o músico compusesse em cima de suas falhas para ganhar uma autonomia de integridade, coisa que soaria meio falsa se pisando apenas em campos que já domina. Ensurdecedor em suas origens, "Coruja muda" reivindica sempre um espaço aberto, disposto a ser preenchido por uma imanência instintiva. Como um abalo de incompletude, "Coruja muda" busca por uma animalização esquecida em tempos de avatares virtuais.
Lost Wisdom Pt. 2 transportou, novamente, o ouvinte aos lugares a que somente Phil Elverum é capaz de transportar: uma meditação brutalmente sincera sobre uma vida que caminha sob a incerteza e a constante degradação da matéria. Como Mount Eerie, seu minimalismo vai ganhando mais contornos enquanto as palavras, sempre honestas e diretas, ocupam o eixo central da meditação. Elverum, ou sua persona, é um observador que é atravessado constantemente pela violência da morte. Por isso, os sussurros suaves que contêm palavras que redimensionam a experiência vivida, pois não há como falar sobre tudo isso sem uma fraqueza inerente que o força a reviver o trauma. A presença demasiada humana pode ser extinta e silenciada pela indiferença do tempo e da natureza quando a fragilidade do corpo e das relações sucumbe ao fim inevitável. A absonância de seus trabalhos pré A Crow... parece ter cedido espaço para algo infinitamente mais violento, ainda que expressado suavemente: a visão da morte em cada objeto do mundo.
A música da Rakta é uma espécie de autoconsumo batizada numa complexa relação interior e como esta emana no mundo. Ela é uma devoção do tempo presente não como resultado de algum produto, mas uma busca de enraizamento no instante que imediatamente escapa. Essa tentativa de captura, de busca por uma afirmação no “mundo que está prestes a acabar… entrando em colapso”, que vai orientar entradas sonoras cada vez mais radicais e inseguras. Porque, como escreveu Cecília Meireles, “tudo o que abarco / se faz presente”, a banda Rakta perpetua seus entrecruzamentos com uma música lotada de repetições que se variam à medida que se projetam.
Só levou pouco mais de dois minutos para perceber que Hidden History of the Human Race seria definitivamente um dos discos do ano. O álbum começa construindo o universo através de seus riffs extremamente sofisticados e rápidos, dissonantes como se a própria matéria estivesse acelerada para exibir um novo universo. Blood Incantation tocando é como um ato performático que força o ouvinte a parar tudo que está fazendo para pensar "caralho, como isso é foda". Ainda assim, em seu início, foi impossível prever que o álbum se transformaria no mutante dilacerante que é. O resultado é o alienígena da capa, uma reconfiguração surreal dos conhecidos elementos do metal para uma aberração filosófica e de técnica impecável.
Confrontando as próprias decisões que configuraram sua vida, Black Alien cria uma refração que dialoga diretamente com a decadência e a tentativa de superá-la. Cada um de seus discos sempre foi de um comentário incisivo sobre uma temática que, de maneira perspicaz, debruçava-se em várias. O disco conta com uma consciência enorme dos demônios internos que contrastam com o ótimo instrumental, como pequenas paisagens sonoras que confortam a persona que atravessa tudo descrito aqui. Apesar de todos esses demônios, é um disco sobre um rapper que se autoafirma enquanto artista e pessoa e revê, em sua trajetória, uma contínua história de superação. Tais versos se constroem em cima de belas melodias - às vezes mais rápidas, às vezes mais contidas - que emprestam ao trabalho uma meticulosidade que exige muita disciplina. Além disso, comprova que "olhar para dentro é olhar pra fora" porque não são poucas as canções com as quais se pode relacionar, especialmente liricamente, em vários níveis compartilhados, simultaneamente trabalhando em beats e texturas que criam uma atmosfera de "consciência de si" durante todo o curto álbum. Essas nove rápidas canções estimulam muitos sentimentos em menos de meia hora e são de uma sensibilidade muito tocante.
Todos os meus amigos estão tristes. Todos estamos perdidos em símbolos que não entendemos muito bem. O meio da vida adulta é isso, eles dizem. Incertezas, mortes, depressão, ansiedade etc. Ouvir David Cloud Berman agora, depois de sua morte, é quase como ouvir um anjo que não suportou o peso do mundo. E quem pôde culpá-lo? E quem suporta de verdade? A gente se agarra aos escapes e torce para não sucumbir à espiral de medo e desespero que constantemente bate à nossa porta. Buscar felicidade até parece algo inocente e bobo. Buscar relações, se compromissar com as pessoas, criar vínculos, em que ponto isso tudo passa a ser natural e não um peso? Berman pareceu não saber e por isso suas palavras ferem tanto: são brutalmente honestas ao falar de nossa incapacidade de se relacionar verdadeiramente com os outros. Então nos isolamos e torcemos para tudo passar, nos isolamos e torcemos para que esqueçam da gente e podemos ficar em nosso canto, com as nossas besteiras, sem sermos acoçados pela capacidade de interagir, olhando sempre pra baixo esperando que o momento eterno de humilhação acabe.
“Besta Fera”, de Jards Macalé, vive dentro de nossos domínios corpóreos numa realidade que se desvela, se altera, mas está sempre ali, à espreita. Livre de qualquer regulação, é um disco à beira de uma anunciação, à beira da despedida. É claro que precisa de existir um consentimento, uma permissão pra que ele te leve a lugares tão escondidos em tua própria terra natal. A vida mundana ganha uma nova abordagem quando expressa através de seus esconderijos, através de um processo contemplativo ativo que investiga os lugares-comuns como potências criativas. A benção simples de sentir uma admiração pela repulsa inicial dos caminhos tortos e dos olhos de sangue que se insinuam por essas ruas. Essa música domina os cantos irrestritos pra que eles vivam através de você.
Eu amo tantos os sons, a confusão, os gritos de pânico. É bem verdade que eu não conseguiria saber como viver sem isso. Percebe? Eu nasci no caos do ABC paulista na classe metalúrgica e a dissonância é a única manifestação sonora com a qual eu realmente me identifico. Eu estou honrado que um disco de alguém que jamais colocará seus pés em Santo André explicite isso. Estou tão honrado a ponto de considerar convidá-los para tomar uma cerveja assistindo ao ramalhão. É a excitação de achar camaradas no mundo, ainda que a quilômetros e um oceano de distância. Entre nós estão os operários, as prostitutas, os pedintes, os chefes - todos fingindo que conseguem não sucumbir a este calor dilacerante de janeiro. A mais chafurda dicotomia de "eu não me misturo" não serve nesta vizinhança. Ou você se mistura ou não mora nesta vizinhança. E se você duvida, tente ficar dez minutos parado observando quem passa sem ver a combinação de quem vive aqui. Poderia fazer relatos falsos de como tudo é integrado e feliz. É tudo muito confuso e muito, muito ruidoso. As pessoas estão perdidas e gritam uma com as outras até determinarem sobre o que especificamente tão se comunicando, se é que estão tentando se comunicar e não somente expressar um monólogo reservado a todos os habitantes desta cidade. E que calor. Uma conexão, um amigo com quem você costumava jogar futebol, vem te oferecer drogas e você responde que tá suave e então, mas só a partir de então, ele começa a perguntar da vida. O Lightning Bolt passou por este quarteirão e lansou algumas brabas com aquelas caras de emoji de um smartphone de 2016. Ninguém pode determinar por qual rua foram embora, mas é só seguir o som cego deles. Outras modificações dissonantes: carros passando e buzinando, a fumaça do eixo industrial como uma neblina perpétua sobre estas casas. Houve época em que isso tudo era mais fácil. Estamos todos juntos, cegados nesta cidade, guiando-nos pelos velhos sons intrusos.
“Isekai” apresenta uma tentativa constante de refutar o engano e uma certeza estagnados. Ao invés disso, se concentra na exploração simultânea de caminhos bifurcados, colhendo sons e perseguindo a melhor forma de eles atravessarem um espírito mais significativo no mundo que se divisa. Mesmo tendo uma linearidade relativamente mais perceptível, Cadu Tenório ainda escolhe desbotar o som de sua nitidez absoluta pra lembrar que cada momento é atravessado por outro, que o “aqui e o agora” é só uma percepção meramente ilusória, pois sempre se carrega muito do que foi e muito do que vai ser em cada instante que brota.
UNIVERSO ESFACELADO
Eu nem sabia que eu tinha algumas questões arraigadas até ouvir Titanic Rising com a devida atenção e ficar literalmente no meu quarto pelas próximas 5 horas ouvindo o disco em repeat perguntando-me como algo tão, tão simples poderia falar comigo de maneiras tão profundas que eu nem imaginasse ser possível. Eu tive de sair e tomar água gelada depois porque eu sentia meu peito palpitando, o que me fez perceber que talvez eu estivesse sedentário e talvez eu precisasse de voltar a correr. Quando a Weyes Blood, que é Natalie Mering, lançou o single Something to Believe, pareceu um ato radical, praticamente de renúncia aos procedimentos de algoritmo para especificar um desafio ao ouvinte: entrar na canção sem as exigências de modernidade, de gêneros ou de ironias líricas. Agora, apenas nove meses depois do lançamento do disco, soa como uma busca profunda e insistente por uma raiz espiritual capaz de reconectar o ser, disperso nas aparências, a conexões mais profundas e essenciais. Quando eu ouvi Something to Believe no contexto do disco, pareceu-me muito mais do que uma simples renúncia, mas que na própria simplicidade da canção estava transcrita o pathos de uma jornada mística no universo esfacelado. Estou confessando que, quanto mais eu ouvia o disco, este tornava-se um instrumento essencial para eu inserir-me nesta jornada da qual nem sabia necessitar. Ele se tornou uma parte determinante de mim e não foram poucas as vezes em que recorri a seu eco em alguma situação difícil para me orientar instintivamente em qualquer dificuldade.
DIFÍCEIS COISAS DIÁRIAS
Desde seu lançamento, eu claramente tenho confundindo o disco como uma divisão importante de mim, desconhecida até então, e parece que quando eu falo (como se alguém se importasse) que é "o meu disco favorito de 2019" eu estou validando uma fração expressiva da minha pessoa, algo que eu tenho de dizer em voz alta, ou escrever sobre, para materializar alguma coisaque se arraigou à minha matéria. Pegou-me totalmente despreparado enquanto consegue penetrar na minha carne, como se ventos alheios trouxessem histórias que eu não sabia ter experimentado. Deslocou minhas ideias para a necessidade de ter experiências reais, ficando exigente no tocante a realmente vivenciar qualquer obra artística como um pedaço da vida. A Lot's Gonna Change, Andromeda e Movies (minhas faixas favoritas) parecem falar especificamente sobre a fase desilusão de si no mundo e uma "queda na realidade" para testemunhar sobre o medo de enfrentar as difíceis coisas diárias.
Um amigo pediu para que eu lhe indicasse um disco que "curasse". Eu não sei bem o que ele quis dizer com isso, mas eu falei que este álbum era capaz de se relacionar com as feridas sem fetichizá-las ou escrevendo receitas de como superá-las com clichês sentimentaloides. Enquanto nós ouvíamos o disco juntos e prestávamos atenção na cidade atrás da janela, algumas lágrimas rolaram e eu percebi que era daquilo que Natalie falara: ter conexões reais. Muito embora eu não pudesse decifrar o que meu amigo sentia, rompeu um respeito cósmico pelo simples fato de ele ser outra presença e outro corpo sensível alheio ao meu, com seus problemas e dificuldades e neuroses e ansiedades. Como eu podia pensar que aquilo, que todas as possibilidades que se fechavam porque eu me fechava, não eram coisas maravilhosas, capazes de presentificar o instante como afeto sempre recorrente? Quem eu seria sem meus terrores, meus afetos, meus amigos, meus pais, meus livros, meus amigos, sem essas manifestações grandiloquentes que a vida plena se desenvolve sempre que sentimos nela uma sensível potência de experiência?
20. Freddie Gibbs & Madlib - Bandana
Freddie Gibbs alastrou ainda mais sua corrente lírica, cobrindo assuntos variados de todo o EUA, com uma produção primorosa de Madlib, incluindo cortes bruscos no meio das canções, o que impulsionou um álbum de muitas histórias curtas justapostas. A sensação é de uma musicalidade fluída, com letras construídas por um observador-ativo no contexto em que vive. A colisão de diversas correntes temáticas não poderia soar mais variada e necessária, à medida que as ambivalências somam para completar um painel tônico que ambos os artistas têm construído nos últimos anos. Assim como compuseram algumas das canções mais divertidas do ano, a dupla confiou em nossa inteligência para estender percepções e observações (sonoras e líricas) que jamais soariam redundantes no corpo sonoro que vêm solidificando.
19. Céu - Apká!
Céu continua com sua excelente produção, só que dessa vez há certa investida para desconstruir a própria atmosfera que o disco inicia, como se fosse um trabalho cíclico que poderia ser alçado ao infinito e reproduzido, de maneira diferente, diversas vezes. Muitos artistas tentam administrar o andamento de seus trabalhos como o curto-circuito proposto por Céu. Céu canta com suas letras reduzidas, meios clichés é verdade, como pequenas anedotas para uma proposição que esboça algo mais transigente em sua discografia. Isso foi um disco sobre uma pessoa tentando sair da redoma que em parte foi construída por ela, em parte deu nascença à própria artista. E posto em prática, é um exercício para, quem sabe, uma década em que ela pise fora do terreno sobre o qual seus excelentes álbuns anteriores se debruçaram.
18. Tyler, the Creator - Igor
Com outro disco cheio sob seus cuidados, Tyler solidificou uma obra de profundas e divertidas autoanálises que, aparentemente, quer abarcar vários nichos musicais e transparecer, através dessa simulação, a complexidade dos pontos de vista do artista. A virtuosidade de Igor é fazer com que esses sons sofisticados e polidos ressoem na audiência de modo a convidar o ouvinte a pressentir a subjetividade do músico como algo único a ser experimentado e compartilhado. Há uma teatralidade justa, incisivamente constituída a partir da aposta de Igor como um retrato íntimo sobre relacionamentos, identidade, términos, LGBT, afetos, exuberâncias, esperança, agonia, introspecção, ritmo, paixões agridoces, romances e melancolia. Para o músico que Tyler é, e mostra querer ser, cada passo seu nos últimos anos tem sido essencial para reverberar que um dos artistas mais polêmicos do começo dos anos 10s abandonou a veia de negação e começa a afirmar coisas poderosas e bonitas sobre a música e, em última instância, sobre a vida.
17. Elza Soares - Planeta fome
Você sabe daquele tipo de música que nós crescemos ouvindo, mas que vinha soando datada pela massividade midiática, pelas ideias repetitivas que se desgastavam e, também, por você começar a se interessar por outras coisas e perceber que o mundo musical é suficientemente rico pra desperdiçar com coisas que você não vê mais tanta graça? Toda toada de Planeta fome reverbera como uma transposição de desenvolvimentos desgastados para uma revisita energética a um rock meio de galeria contemporânea meio de garagem, aberto ao samba e à MPB. O resultado foi de uma familiaridade renovada em arranjos e cantos roucos. As partes de protesto se aglomeram ao amplo corredor de transposições e as partes fixas começam a sambar sem que sejam forçadas para tanto. Tido como um todo, o álbum personifica a capa (de Laerte Coutinho) como uma emanação de símbolos ao quais se recorre quando a contemporaneidade perdeu sua força de especular e resistir. As excessivas fontes de criação provam que a cultura em que se está inserido nunca está totalmente enxuta, estando sempre disposta a redefinir as estátuas mofadas em algo ativo e diligente.
16. Billy Woods & Kenny Segal - Hiding Places
Agredindo com ritmos hipnóticos que parecem com uma tentativa de abandonar o cárcere de várias camadas, Hiding Places sedimenta o caminho dos músicos como uma das coisas mais importantes rolando no hip hop dito "underground", emitindo uma série de sons contidos, como se estivessem prestes a explodir, mas mantendo o instante de "à beira do abismo" pra deixar a engrenagem lenta rolando. Se eu estou parecendo ridículo aqui, é porque eu encarei o álbum como uma constante renovação que não precisa de uma erradicação total para se reconstituir. Ainda há coisas boas em meio ao caos. Como um Phillip Glass do rap moderno, desempenhando um sub-discurso que, à primeira visita, parece alienado da realidade sonora. O movimento aspiratório de Hiding Places é renovar através da manutenção do foco no ritmo como uma revolução que lentamente constrói um corpo pronto para a resistência.
15. Blut aus Nord - Hallucinogen
Hallucinogen soou como uma viagem profundamente ligada à organicidade da terra. Blut aus Nord criou sons que se interligaram a uma concepção dos elementos naturais como potenciais mudanças bruscas na perspectiva de como se observa o tempo e os seres circundantes. Essa composição atravessou o simples campo discursivo de estridência, sobre o qual o black metal se debruça tão recorrentemente, para tentar fazer os instrumentos e as vozes soarem como ritos de transcendência. E foi muito divertido ser absorvido por tais construções, ficar totalmente entregue à refração de percepções possíveis a partir do minuto que se inicia o disco. Novas configurações são possíveis, e isso é algo muito poderoso quando se trata do black metal trabalhando para objetivos diferentes dos quais, teoricamente, almejava. Uma nova coreografia no arsenal de trabalhos de uma banda que não cansa de olhar para o mundo de diferentes ângulos.
14. The Caretaker - Everywhere at the End of Time - Stage 6
Everywhere at the End of Time é a obra derradeira de uma das séries mais impressionantes (senão a mais) de que se tem notícia na música mundial nos últimos 20 anos. A assimetria com outros discos de música ambiente é tão grande que este disco deveria ser colocado numa outra prateleira: a do diagnóstico do esquecimento, de como os fantasmas ficam cada vez mais presentes com a chegada da morte. O sono que chega, isso se percebe desde o primeiro instante, não é a dormência tranquila, mas a própria morte se manifestando como imagens borradas e irreais, corrompendo o cérebro a ponto de deixá-lo demente. A derrocada perpétua que se instala é de terror, do labirinto do tempo que propaga a entropia universal em seu corpo, em seus excrementos, em sua voz. Tente ouvir sem ser assaltado pelo desgaste e pela desolação de quem vive num passado esquecido, obscurecido pelas ruínas cadavéricas. Quando seu cérebro deixa de ser seu confidente e não há tipo nenhum de resgate para o esquecimento total.
13. Waste of Space Orchestra - Syntheosis
Eu lembro bem a primeira vez que ouvi Syntheosis. Em um ônibus para Santo André, eu ouvia o disco enquanto lia um romance da Eleanor Catton. Em alguma festa em Santo André, uns dois dias depois, eu tentei falar com os meus amigos "avançados do jazz" sobre a minha experiência absolutamente única ouvindo o disco do Waste of Space Orchestra. Eles sorriram e desconversaram, desacreditando que o metal era capaz de novas abordagens (curioso que meus "amigos do metal" acham a mesma coisa do jazz, rs). Afortunado fui de eles cagarem para o Waste of Space Orchestra. Pareceu justo para mim que aquela viagem de oito horas fosse uma experiência intransferível, que deveria ficar fechada no que ela significou para mim. Eu não tô aqui tentando causar expressividade prum momento meu, tenho certeza de que todos têm isso todos os dias. Eu me empenhei para ouvir Syntheosis novamente para escrever isso daqui, mas eu não consegui. Uma pena que eu não chegue "àquele momento" apenas mais uma vez, mas eu estou muito feliz de que alguns seres humanos foram capazes de possibilitar isso.
12. Blanck Mass Animated - Violence Mild
Nós conhecemos o motivo do porquê de tantas canções "ruidosas" este ano: nós precisamos de ouvir a cacofonia cada vez mais presente no mundo de ansiedades e aceleração. O álbum correu o risco de ser interpretado como puro barulho, mas, sinceramente, não podia ser ouvido assim, não nos dias em que o barulho é uma espécie de silêncio e a harmonia são comerciais chatos de bancos de investimentos nos anúncios do Youtube. Nós compreendemos mal, inicialmente, o que estes ruídos dissonantes coreografados significavam. Mas uma espécie de fantasma subsistiu. Ocorreu-nos que havia um tipo de substrato que resistia à vontade de "não ouvir esta merda de novo". Nós paramos de tapar o ouvido e demos uma chance. Uma última chance. (não sem antes ouvir a discografia de uma banda de pop punk e cantar refrões idiotas para comprovar que ainda podíamos sentir algo semelhante ao que aqueles adolescentes sentiam). Por vezes, podemos perceber o álbum inteiro engolfado numa música (Death Drop) e perceber que todo o universo do disco é uma expansão daquela única canção. O resultado foi que aceitamos as cadências quebradas, os deuses da harmonia abandonados e os sub-gritos eletrificados por altas voltagens. Uma canção dum pássaro virtual que brilha através das páginas de carregamento e berra através dos alto falantes com mau contato. O sol artificial de algum fórum do reddit brilhando em 8 bits. Pode ter se realizado em um quarto quente e abafado do interior, em uma caminhada com o cachorro, mas a questão é que presentificou uma expansão do universo difuso, o universo do mau contato. Passamos a considerar Violence Mild como a única resposta artística ao tempo em que a profusão de ruídos dominou o mundo sensível. Ascendendo como os assuados que em breve estarão mortos, percebemos que há um atravessamento artístico que consegue dar ao caos disperso uma profundidade passível de se relacionar.
11. Angel Olsen - All Mirrors
Os passos lentos com que Angel Olsen anda estão ficando cada vez mais fatais e sofisticados, banalizando qualquer outro abafamento que não sua expressão enquanto transita. A andada não é para admirar ou contemplar o mundo, mas pra fazer todo o entorno ser tomado pela sua subjetividade dilacerante. All Mirrors não foi um disco de espelhamento, mas a necessidade de incorporar cada imagem refratada para, enfim, poder superá-la. Assistir aos enterros de várias projeções de si. Sua bionomia é composta por percepções fugazes, bastante trágicas, que tornam um inferno a própria identidade a que se referenciam. Pormenores são tomados como inimigos potenciais e examinados com a interpretação sempre hiperbólica de Angel Olsen, como se este fosse o seu palco e a peça fosse o manuscrito de toda a sua vida. A racionalidade dos anjos esbarram na iminência do desespero com que ela performa sua canção, como se Angel Olsen lutasse com toda a sua energia para expurgar os demônios cíclicos que já percebeu em sua vida. É um convite bastante sugestivo para você perceber quais imagens de si quer expurgar para sempre e tentar sair exorcizado disso tudo.
10. Siba - Coruja muda
O disco de Siba foi um esforço consciente no preenchimento dos espaços a partir do engajamento, do discurso e do som. "Coruja muda" foi criado como um enorme questionamento da própria obra que o artista vem construindo e o resultado da tensão de buscar novas saídas para um corpo de trabalho já riquíssimo. Desde o lançamento do disco, a impressão do investigamento nas imperfeições é ainda maior, como se o músico compusesse em cima de suas falhas para ganhar uma autonomia de integridade, coisa que soaria meio falsa se pisando apenas em campos que já domina. Ensurdecedor em suas origens, "Coruja muda" reivindica sempre um espaço aberto, disposto a ser preenchido por uma imanência instintiva. Como um abalo de incompletude, "Coruja muda" busca por uma animalização esquecida em tempos de avatares virtuais.
09. Mount Eerie With Julie Doiron - Lost Wisdom Pt. 2
Lost Wisdom Pt. 2 transportou, novamente, o ouvinte aos lugares a que somente Phil Elverum é capaz de transportar: uma meditação brutalmente sincera sobre uma vida que caminha sob a incerteza e a constante degradação da matéria. Como Mount Eerie, seu minimalismo vai ganhando mais contornos enquanto as palavras, sempre honestas e diretas, ocupam o eixo central da meditação. Elverum, ou sua persona, é um observador que é atravessado constantemente pela violência da morte. Por isso, os sussurros suaves que contêm palavras que redimensionam a experiência vivida, pois não há como falar sobre tudo isso sem uma fraqueza inerente que o força a reviver o trauma. A presença demasiada humana pode ser extinta e silenciada pela indiferença do tempo e da natureza quando a fragilidade do corpo e das relações sucumbe ao fim inevitável. A absonância de seus trabalhos pré A Crow... parece ter cedido espaço para algo infinitamente mais violento, ainda que expressado suavemente: a visão da morte em cada objeto do mundo.
08. Rakta - Falha comum
A música da Rakta é uma espécie de autoconsumo batizada numa complexa relação interior e como esta emana no mundo. Ela é uma devoção do tempo presente não como resultado de algum produto, mas uma busca de enraizamento no instante que imediatamente escapa. Essa tentativa de captura, de busca por uma afirmação no “mundo que está prestes a acabar… entrando em colapso”, que vai orientar entradas sonoras cada vez mais radicais e inseguras. Porque, como escreveu Cecília Meireles, “tudo o que abarco / se faz presente”, a banda Rakta perpetua seus entrecruzamentos com uma música lotada de repetições que se variam à medida que se projetam.
07. Blood Incantation - Hidden History of the Human Race
Só levou pouco mais de dois minutos para perceber que Hidden History of the Human Race seria definitivamente um dos discos do ano. O álbum começa construindo o universo através de seus riffs extremamente sofisticados e rápidos, dissonantes como se a própria matéria estivesse acelerada para exibir um novo universo. Blood Incantation tocando é como um ato performático que força o ouvinte a parar tudo que está fazendo para pensar "caralho, como isso é foda". Ainda assim, em seu início, foi impossível prever que o álbum se transformaria no mutante dilacerante que é. O resultado é o alienígena da capa, uma reconfiguração surreal dos conhecidos elementos do metal para uma aberração filosófica e de técnica impecável.
06. Black Alien - Abaixo de zero: Hello Hell
Confrontando as próprias decisões que configuraram sua vida, Black Alien cria uma refração que dialoga diretamente com a decadência e a tentativa de superá-la. Cada um de seus discos sempre foi de um comentário incisivo sobre uma temática que, de maneira perspicaz, debruçava-se em várias. O disco conta com uma consciência enorme dos demônios internos que contrastam com o ótimo instrumental, como pequenas paisagens sonoras que confortam a persona que atravessa tudo descrito aqui. Apesar de todos esses demônios, é um disco sobre um rapper que se autoafirma enquanto artista e pessoa e revê, em sua trajetória, uma contínua história de superação. Tais versos se constroem em cima de belas melodias - às vezes mais rápidas, às vezes mais contidas - que emprestam ao trabalho uma meticulosidade que exige muita disciplina. Além disso, comprova que "olhar para dentro é olhar pra fora" porque não são poucas as canções com as quais se pode relacionar, especialmente liricamente, em vários níveis compartilhados, simultaneamente trabalhando em beats e texturas que criam uma atmosfera de "consciência de si" durante todo o curto álbum. Essas nove rápidas canções estimulam muitos sentimentos em menos de meia hora e são de uma sensibilidade muito tocante.
05. Purple Mountains - Purple Mountains
Todos os meus amigos estão tristes. Todos estamos perdidos em símbolos que não entendemos muito bem. O meio da vida adulta é isso, eles dizem. Incertezas, mortes, depressão, ansiedade etc. Ouvir David Cloud Berman agora, depois de sua morte, é quase como ouvir um anjo que não suportou o peso do mundo. E quem pôde culpá-lo? E quem suporta de verdade? A gente se agarra aos escapes e torce para não sucumbir à espiral de medo e desespero que constantemente bate à nossa porta. Buscar felicidade até parece algo inocente e bobo. Buscar relações, se compromissar com as pessoas, criar vínculos, em que ponto isso tudo passa a ser natural e não um peso? Berman pareceu não saber e por isso suas palavras ferem tanto: são brutalmente honestas ao falar de nossa incapacidade de se relacionar verdadeiramente com os outros. Então nos isolamos e torcemos para tudo passar, nos isolamos e torcemos para que esqueçam da gente e podemos ficar em nosso canto, com as nossas besteiras, sem sermos acoçados pela capacidade de interagir, olhando sempre pra baixo esperando que o momento eterno de humilhação acabe.
04. Jards Macalé - Besta fera
“Besta Fera”, de Jards Macalé, vive dentro de nossos domínios corpóreos numa realidade que se desvela, se altera, mas está sempre ali, à espreita. Livre de qualquer regulação, é um disco à beira de uma anunciação, à beira da despedida. É claro que precisa de existir um consentimento, uma permissão pra que ele te leve a lugares tão escondidos em tua própria terra natal. A vida mundana ganha uma nova abordagem quando expressa através de seus esconderijos, através de um processo contemplativo ativo que investiga os lugares-comuns como potências criativas. A benção simples de sentir uma admiração pela repulsa inicial dos caminhos tortos e dos olhos de sangue que se insinuam por essas ruas. Essa música domina os cantos irrestritos pra que eles vivam através de você.
03. Lightning Bolt - Sonic Citadel
Eu amo tantos os sons, a confusão, os gritos de pânico. É bem verdade que eu não conseguiria saber como viver sem isso. Percebe? Eu nasci no caos do ABC paulista na classe metalúrgica e a dissonância é a única manifestação sonora com a qual eu realmente me identifico. Eu estou honrado que um disco de alguém que jamais colocará seus pés em Santo André explicite isso. Estou tão honrado a ponto de considerar convidá-los para tomar uma cerveja assistindo ao ramalhão. É a excitação de achar camaradas no mundo, ainda que a quilômetros e um oceano de distância. Entre nós estão os operários, as prostitutas, os pedintes, os chefes - todos fingindo que conseguem não sucumbir a este calor dilacerante de janeiro. A mais chafurda dicotomia de "eu não me misturo" não serve nesta vizinhança. Ou você se mistura ou não mora nesta vizinhança. E se você duvida, tente ficar dez minutos parado observando quem passa sem ver a combinação de quem vive aqui. Poderia fazer relatos falsos de como tudo é integrado e feliz. É tudo muito confuso e muito, muito ruidoso. As pessoas estão perdidas e gritam uma com as outras até determinarem sobre o que especificamente tão se comunicando, se é que estão tentando se comunicar e não somente expressar um monólogo reservado a todos os habitantes desta cidade. E que calor. Uma conexão, um amigo com quem você costumava jogar futebol, vem te oferecer drogas e você responde que tá suave e então, mas só a partir de então, ele começa a perguntar da vida. O Lightning Bolt passou por este quarteirão e lansou algumas brabas com aquelas caras de emoji de um smartphone de 2016. Ninguém pode determinar por qual rua foram embora, mas é só seguir o som cego deles. Outras modificações dissonantes: carros passando e buzinando, a fumaça do eixo industrial como uma neblina perpétua sobre estas casas. Houve época em que isso tudo era mais fácil. Estamos todos juntos, cegados nesta cidade, guiando-nos pelos velhos sons intrusos.
02. Cadu Tenório - Isekai<blue Thirty-four>
“Isekai” apresenta uma tentativa constante de refutar o engano e uma certeza estagnados. Ao invés disso, se concentra na exploração simultânea de caminhos bifurcados, colhendo sons e perseguindo a melhor forma de eles atravessarem um espírito mais significativo no mundo que se divisa. Mesmo tendo uma linearidade relativamente mais perceptível, Cadu Tenório ainda escolhe desbotar o som de sua nitidez absoluta pra lembrar que cada momento é atravessado por outro, que o “aqui e o agora” é só uma percepção meramente ilusória, pois sempre se carrega muito do que foi e muito do que vai ser em cada instante que brota.
01. Weyes Blood - Titanic Rising
UNIVERSO ESFACELADO
Eu nem sabia que eu tinha algumas questões arraigadas até ouvir Titanic Rising com a devida atenção e ficar literalmente no meu quarto pelas próximas 5 horas ouvindo o disco em repeat perguntando-me como algo tão, tão simples poderia falar comigo de maneiras tão profundas que eu nem imaginasse ser possível. Eu tive de sair e tomar água gelada depois porque eu sentia meu peito palpitando, o que me fez perceber que talvez eu estivesse sedentário e talvez eu precisasse de voltar a correr. Quando a Weyes Blood, que é Natalie Mering, lançou o single Something to Believe, pareceu um ato radical, praticamente de renúncia aos procedimentos de algoritmo para especificar um desafio ao ouvinte: entrar na canção sem as exigências de modernidade, de gêneros ou de ironias líricas. Agora, apenas nove meses depois do lançamento do disco, soa como uma busca profunda e insistente por uma raiz espiritual capaz de reconectar o ser, disperso nas aparências, a conexões mais profundas e essenciais. Quando eu ouvi Something to Believe no contexto do disco, pareceu-me muito mais do que uma simples renúncia, mas que na própria simplicidade da canção estava transcrita o pathos de uma jornada mística no universo esfacelado. Estou confessando que, quanto mais eu ouvia o disco, este tornava-se um instrumento essencial para eu inserir-me nesta jornada da qual nem sabia necessitar. Ele se tornou uma parte determinante de mim e não foram poucas as vezes em que recorri a seu eco em alguma situação difícil para me orientar instintivamente em qualquer dificuldade.
DIFÍCEIS COISAS DIÁRIAS
Desde seu lançamento, eu claramente tenho confundindo o disco como uma divisão importante de mim, desconhecida até então, e parece que quando eu falo (como se alguém se importasse) que é "o meu disco favorito de 2019" eu estou validando uma fração expressiva da minha pessoa, algo que eu tenho de dizer em voz alta, ou escrever sobre, para materializar alguma coisaque se arraigou à minha matéria. Pegou-me totalmente despreparado enquanto consegue penetrar na minha carne, como se ventos alheios trouxessem histórias que eu não sabia ter experimentado. Deslocou minhas ideias para a necessidade de ter experiências reais, ficando exigente no tocante a realmente vivenciar qualquer obra artística como um pedaço da vida. A Lot's Gonna Change, Andromeda e Movies (minhas faixas favoritas) parecem falar especificamente sobre a fase desilusão de si no mundo e uma "queda na realidade" para testemunhar sobre o medo de enfrentar as difíceis coisas diárias.
Um amigo pediu para que eu lhe indicasse um disco que "curasse". Eu não sei bem o que ele quis dizer com isso, mas eu falei que este álbum era capaz de se relacionar com as feridas sem fetichizá-las ou escrevendo receitas de como superá-las com clichês sentimentaloides. Enquanto nós ouvíamos o disco juntos e prestávamos atenção na cidade atrás da janela, algumas lágrimas rolaram e eu percebi que era daquilo que Natalie falara: ter conexões reais. Muito embora eu não pudesse decifrar o que meu amigo sentia, rompeu um respeito cósmico pelo simples fato de ele ser outra presença e outro corpo sensível alheio ao meu, com seus problemas e dificuldades e neuroses e ansiedades. Como eu podia pensar que aquilo, que todas as possibilidades que se fechavam porque eu me fechava, não eram coisas maravilhosas, capazes de presentificar o instante como afeto sempre recorrente? Quem eu seria sem meus terrores, meus afetos, meus amigos, meus pais, meus livros, meus amigos, sem essas manifestações grandiloquentes que a vida plena se desenvolve sempre que sentimos nela uma sensível potência de experiência?
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