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segunda-feira, 9 de março de 2020

Esses fantasmas são o sistema nervoso

Eu tenho sentido o gosto de cromo guiar minha garganta como Rokkadi em sua descida infernal com a motosserra, fugindo de fantasmas que, na verdade, eram seus medos que, na verdade, eram ecos de sua vida passada, como um abismo de errância e sangue. Como uma armadilha, você espera suas presas estarem nos momentos mais realizáveis para torturá-las. Com M. foi assim. Ele era meu melhor amigo e terminou sem cumprir as promessas de nossa juventude porque ele simplesmente não queria mais viver. E sei que, quando coloco assim, pode parecer ofensivo a quem tenha se suicidado ou aos parentes, mas, merda, eu sei como foi passar aqueles outros dias olhando para uma parede imóvel esperando que alguém ligasse, dizendo que tudo não passava de um engano. Seus olhos negros foram as únicas coisas com que eu pude contar naqueles meses derradeiros. Seus olhos, ainda vivos, cheios de exuberância, cantando uma canção de amizade. Nós choramos assistindo ao episódio em que Lorelai recebia um milhão de margaridas amarelas e falamos um com outro, Hein, cara, isso deve ser a última felicidade, Depois disso não melhora. Coisas assim. Nós tentamos nosso melhor um com o outro. Mas o corpo morto é sempre a declaração maior de que o Fim vem. Hoje, Max von Sydow morreu. Perdeu aquela batalha pra morte que começou em 1957. O demônio, penso eu, é uma coisa bem menos sádica do que imaginamos. O demônio, penso eu, é o Cosmos lembrando sua natureza impiedosa. Como se nossos desejos tivessem alguma relevância, ganhando corpo e entrando em combustão. É sua impessoalidade que mais toca a gente, que mais nos arranca do delírio que é a vida e nos coloca em confronto com a Realidade-Última. É sua pessoalidade que me faz perder esperança e conviver com o constante desencanto pelo fato de estar sumindo. Eu recorro à linguagem para falar dessas coisas que as palavras não alcançam, mas eu espero que um ambiente ébrio consiga ganhar materialidade com a lembrança de recônditos quase inacessíveis ganhando corpo como um último lembrete de sua indiferença. Quando eu estou sozinho tentando fazer algo, eu sou revisitado por absolutamente tudo como uma espiral de imagens que me impede de caminhar. Aí, Lavras parece outra cidade amaldiçoada como todas as outras em que estive (e Deus sabe quantas foram). As cidades esquecidas da infância são paraísos impossíveis. Os propósitos nostálgicos não são mais áreas Sagradas. O acúmulo de poeira, cada vez maior, cada vez mais ameaçador, impede uma caminhada serena, uma caminhada poética, ou qualquer dessas baboseiras de aparições salvadoras que acontecem quando se está prestes a sucumbir. Eu não conheço ninguém que não esteja prestes a sucumbir.

Paddleton (2019)

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