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quinta-feira, 19 de novembro de 2020

poemas para as ruas pedregosas III

 


Perdão


Eu guardo suas palavras assim como tenho seu amuleto 

para sempre inerente ao meu corpo. Seus olhos trágicos

na noite de despedida foram como relâmpagos anunciando tempestades

em nossa terra natal. Sempre volto à ponte em

que nos conhecemos para lembrar como você decidiu morrer

ali, sob os carros que poderiam conter nossa intimidade 

se a força da perdição não tivesse guiado seus 

passos até um esmagamento. Você teria seu perdão.


Noturno

Todas as vozes são iguais, ecos

de que alguma preciosidade foi perdida

no processo da vida, entre hotéis

e conferências, sorrisos e adulações. Eu

sempre chego esgotado em um quarto

desconhecido, observando o céu da cidade

mudar de tons como gerentes fiscalizam 

seus funcionários.


Pensei ouvir alguma voz diferenciada, cantando 

canções populares em outra frequência, o

que me trouxe a sensibilidade do 

frescor: o mundo é uma andança

contínua entre becos escuros no aguardo 

de uma voz eminente que quebre 

o feitiço estéril de estar acorrentado

aos suores noturnos. 


Construção

O sonho de destaque sempre foi 

a demanda inalcançável. Eu escrevia 

uma tonelada de páginas e enviava 

a mim mesmo. Mergulhei, nu, na 

piscina e quando saí encontrei outro 

homem perdido, andando de bicicleta, as 

canelas finas, os olhos desajustados com 

a realidade. Passamos uma noite inteira 

assistindo a filmes antigos de zumbis, 

o retrato do meu filho morto 

nos fazendo companhia. Todas as dissertações 

que eu sonhei fazer vagaram em 

torno do mesmo tema: encontrar uma 

espécie de voz que não fosse

dissonância pura, para, então, ser possível 

qualquer espécie de construção.


Aceno


Levantei o banco do carro

para olhar o cemitério encharcado 

de memórias e fantasmas. Eu 

sentia muita raiva e dor, 

tomei analgésicos até começar a 

fantasiar diálogos com os mortos 

em piscinas frias. Eu perguntava 

por que eles se mataram 

e eles respondiam que era 

muito difícil. Insuportavelmente difícil.


Voltei a encarar a realidade 

quando as pessoas que desprezei 

decidiram que, por algum motivo, 

eu merecia uma espécie de

redenção. Olhando para um enorme

quadro na sala-de-estar, 

ouvindo um rumorejar do vento 

improvável, eu aceitei a dor

no meu sistema nervoso central

de outra maneira. Segui receitas 

e receitas até chegar embaixo 

da árvore, no mesmo cemitério 

que a depressão se manifestou, 

e ouvir o Sino Dos

Ventos que nossas crianças fizeram

como um último aceno.


Salvação


Olhar para o aquário vazio 

foi como revisitar a infância. 

Minha irmã ainda estava lá, 

jogando esqueletos sobre piscinas aquecidas. 

Andamos pelo cemitério onde o 

túmulo do papai está, uma 

espécie de zona neutra entre 

o presente e o que

fomos. Ela disse que o 

corte deveria ter sido mais 

profundo, mais certeiro. Eu disse 

que eu estava melodramático e 

saí andando por essa velha 

cidade como quem anda por 

respostas. Encontrei um grande amor 

decidido a dar abrigo e 

no invólucro da questão central 

me deparei com fotos nossas, 

quando éramos crianças e adolescentes. 

A única pessoa em que 

eu posso me apoiar é 

a única que me decifrou 

de verdade: nascemos no mesmo 

dia, cometemos mais ou menos 

os mesmos erros e formulamos 

a mesma questão, ancorando, um 

no outro, uma hipótese de 

salvação.


Futuro


Para além da pedreira, para além do lixão, 

do puteiro que ficava aberto o dia todo, 

das inúmeras lojas baratas que roubávamos álcool e 

de vez em quando deixávamos uns reais a 

mais em função da culpa, há um Abismo. 

Ele é infinito. Ele é uma entidade cujo 

eco é a infância que ignorou a gravidade 

e ricocheteia os adultos insensíveis como um bafo 

quente numa tarde de novembro. Há o protetor 

do Abismo Infinito que vende joias roubadas de 

corpos jazendo no cemitério dos ricos. Os mortos 

não reclamam suas joias, eles surgem da iminência 

do Abismo Infinito, soprando, paradoxalmente, vida e futuro.


Calor


Você falou sobre a inevitabilidade da primavera e como,

mesmo enclausurado, consegue sentir o cheiro da chuva horas

antes da primeira gota. Eu disse que isso era

um dom. Você riu timidamente e disse que as quinta-

feiras são sagradas. Eu comecei a desenhar flores, árvores,

pássaros e crianças porque acho que, de certa forma, te

devo a bênção da visão. Eu vejo os dias

transcorrendo de outra forma: sem os cacos de vidro,

sem os remédios e eu juro que nem sabia

que isso era possível.


Eu voltei a tocar piano e cada nota me

lembra o rosto enclausurado, como se estivesse numa foto

três por quatro colegial, sentindo um frio terrível na

espinha, o mal-estar crônico até sentir o calor

de outro corpo ignorando a lei da física. Sob

a manta da comunhão, a glacialidade do mundo se

desmancha como se a corrente de ar mais fria

não suportasse a ideia do calor.

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