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terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Elza - A mulher do fim do mundo [2015]

Elza mira mais alto do que mirou em toda sua vida, e não poderia ser de outra maneira. Suas lágrimas trazem alegria e sua opinião é de que só resta cantar. Ela só quer “cantar até o fim”. E é com tanto choro e garra que ela afirma que é a “mulher do fim do mundo que vai cantar até o fim” que não podemos deixar de sentir sua vibração. E ela quer lutar de volta, ela não vai ficar quieta para nenhum homem agressor; ela vai lutar com todas suas armas- água quente, cachorro, vai esculachar o macho para a mãe dele. Pode-se alçar A mulher do fim do mundo a um dos marcos em qualquer segmento artístico brasileiro; ele não só representa a cena da nova vanguarda paulista que se formava há anos no subterrâneo musical brasileiro (e que atingiu seu auge no ano passado com o disco da Juçara Marçal) como a movimentação social causada pelos dois movimentos que mais tem ganhado força; feminismo e movimento negro. Elza olha para seu corpo, sente a libido, ela quer mais. Ela quer fuder. Ela quer fuder tudo com uma idade em que muitos recuam, falam sobre amadurecer, mas não ela. Ela está em chamas, ela quer cravar unhas. Com o simples refrão “pra fuder”, Elza comemora seu corpo, comemora seu desejo. E ela não se entrega a um disco marginal de fachada, ela sabe e ela prova que todas suas ações, todas suas palavras são justificadas e necessárias. Qualquer marginalização com essa obra de Elza seria estupidez; porque seu discurso está por dentro, está validado- só não estamos acostumados com artistas que o utilizasse.

A poesia urbana que fala de crack e de homicídio em uma profusão sonora angustiante, em que cada andamento “assassina” o ritmo anterior. Esse ambiente sonoro é filho direto dessa movimentação subterrânea que eu mencionei anteriormente, a inquietação de Elza e do retrato de nosso país. Em nenhum ponto Elza perde o humor e a ironia mesmo em situações pesadas. Ela, ao contrário de algumas comparações com a obra de Clarice, não é uma observadora “nata”. Ela participa de tudo. Ela usa essas gírias. Ela viveu naqueles espaços. Ela diz “mano”. Suas músicas falam de ameaças machistas e também celebram um simples encontro com um amigo que ela não para de chamar “meu irmão, moleque, mil grau”. Elza, apesar de todas as frustrações explosivas que exala nesse disco, está feliz. Debaixo de toda construção instrumental, é revelada uma Elza não assustada com sua condição mortal e a aproximação da morte (o que é tema comum para artistas com tal idade), mas uma mulher enraizada em seu ambiente e em suas pautas sociais. Ela fala sobre suas companheiras que não estão bem, que passam dificuldades. Ela fala sobre história e sobre amigos da “laje” com a mesma propriedade.

 Elza não se vê como uma alma perdida, ela reconhece lugares importantes (um Rio muito além dos cartões postais), impregnados em noções de comunidade e que ao mesmo tempo carregam um perigo físico iminente. Os momentos poéticos são os momentos crus, não há desligamento possível. Porque essa associação global/individual em que múltiplos elementos explodem em uma voz tão marcante como a de Elza que podemos ainda acreditar na modernidade. Ao mesmo tempo em que uma era produz tanta informação e pode causar a subjetivação extrema de questões socioculturais, ela permite que uma artista como Elza explore com propriedade seu ponto de vista, flutuando entre temas complexos. A persona de Elza simplesmente não existe. Ao mesmo tempo em que é importante figuras como Kendrick falar sobre problemas sociais não apenas de seu ponto de vista (Lamar assume várias personas em seus discos), a autenticidade de Elza, indo de poesia clássica à gírias de sua vila, grita tão alto que não sobram meias-impressões. A mulher do fim do mundo exibe uma fibra sonora que vai com certeza destruir padrões para os próximos lançamentos. Exibe uma artista que depois de tantos anos de carreira compôs o disco mais transgressivo de sua discografia em uma época que, parece, a maioria das coisas consideradas transgressivas são falsificadas com discursos pseudorrebeldes. Rebeldia que Elza nem clama pra si, apesar de estraçalhar limites em que as cadências comuns do samba simplesmente são aniquiladas por um violino que faz pano de fundo para Elza “cantar até o fim, eu sou a mulher do mundo”. A intensidade de alguém que vai jogar água quente jamais poderia ser tachada como simples rebeldia, mas uma reação necessária, a reação de Elza em todo o disco é a única reação que uma pessoa com sua envergadura pode ter.

Aliás, em um disco que toda estrutura sonora soa intencionalmente distorcida, o único ponto que não tem nenhuma distorção é a autenticidade com que Elza diz que o homem idiota “vai se arrepender”. Não é uma ameaça, é um aviso, um aviso visceral. O som da banda de Elza é cativante, oferece uma audição que apesar de decididamente “esquisita”, mostra-se acessível porque “desconstrói” bases instrumentais muito comuns na música brasileira. Nada soa “abusivo” em A mulher do fim do mundo. Elza sabe que todos tropeçam, que o mundo vai terminar cheio de merda. E a partir do reconhecimento dessa imundice que perdura na contemporaneidade, ela só pode se entregar ao máximo. Não que o mundo mereça isso, mas porque nós, que suportamos isso, merecemos. Nós suportamos o caos, os tiroteios, a solidão como um cachorro sozinho na praça e não vamos sambar? Como assim não vamos festejar viver nesse inferno?

Os músicos talentosos, as progressões “samba-rock-marcha-math” abrem esse vasto terreno em que Elza nos apresenta um Brasil decadente (e que seus cidadãos tentam encontrar sobrevida no sexo, nas drogas, no humor). Não é como se Elza não sentisse medo, mas ela reconhece a invalidez criativa desse sentimento. Ela surge com a testemunha de um mundo violento e quer representar esse absurdo em um conceito estético extremamente autêntico. Há certos momentos noir que me remete muito ao álbum colaborativo Thiago França, em que a orquestrações lentas dos acordes são misturadas com os estranhos riffs de guitarra, mostrando os compositores e produtores das canções como os mais excitantes dessa geração.

Talvez a felicidade de Elza se baseie em encontrar companheiros tão talentosos para aguentar esses cenários urbanos devastados que ela descreve. Debaixo desse caos sonoro está a voz rouca de Elza, que se levanta para que todos saibam que ela não está morta, que sua volta deve ser encarada sob o ângulo da inovação em nossa música popular estagnada, que se o The Voice existe não devemos dar importância; a Elza resiste, suas reivindicações são legitimas e somos testemunhas de um período de virada na música brasileira. Não importa se de fato Elza não escreveu essas canções, porque ela nitidamente vive cada uma delas, ela se entrega porque sua vida com certeza está resumida nelas; as decadências, as contemplações solitárias, o cheiro ruim da cidade. É um disco que pode ser aplicado em qualquer metrópole brasileira, porque aqui o clima noir não se baseia no mistério, mas na certeza que a cada momento nossa alma é corroída pelos sem teto cheios de crack, pelas prostitutas que abusamos, pelas mulheres que nós matamos. Está tudo tão torto, a sombra engoliu tudo; nossas possibilidades de redenção, nossos melhores momentos, nossas antigas amizades, nossos antigos amores.

O corpo de Elza também sente isso. Ela com certeza soa nostálgica muitas vezes, como se a própria sombra fosse um reflexo de sua vida recente. O primeiro minuto da última faixa é carregado de drone; como se esse minuto sintetizasse a angústia que todo o disco transbordou. Ali, no final, Elza encontra sua redenção “levar a mãe dela com ela de um modo que não sabe dizer”. Pode-se sentir tudo isso em A mulher do fim do mundo; o mangue, as escolas de samba. Esse disco não só representa; ela é verdadeiramente as caminhadas entre a Sé, a Praça da República, a subida pra Augusta pela Praça Roosevelt. Em que é impossível não sentir o cheiro de urina, perceber as prostitutas em esquinas escondidas e uma pergunta sincera que brota; “o que fazer com tudo isso? O que sentir? Por que tudo isso? Por quê?”.


Elza quer cantar. O mundo ainda não tem fim porque ela pode cantar, o resto não importa muito. E quando ela diz “me deixem cantar até o fim”, ela não pede permissão. Ela simplesmente avisa o que vai fazer. E em A mulher do fim do mundo ela faz demais, ela homenageia nossa modernidade decadente. A sonoridade do álbum é difícil de catalogar, e quem não está por dentro das novas vertentes brasileiras pode sair um pouco perdido. Elza chega para entregar o tipo de samba que ainda pode ter alguma relevância, ela surge para mostrar a tremenda importância que um disco desafiador pode ter. Ela atira pra cima de nós, sem nenhum arrependimento, a constatação de música provocante e intricada, como uma água quente impossível de desviar.

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