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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

As tonalidades do Brasil ("Que você é esse?", de Antonio Risério)

"Que você é esse?", de Antonio Risério, ratifica a história da miscigenação do Brasil sob a perspectiva de um tempo, paralelamente, obscuro e esperançoso.



"Se um dia eu resolver dar um tiro na cabeça, podem ter certeza de que não será na minha"

O que é a escrita de um povo, contar suas histórias, a não ser um esforço de atribuir a maravilha da ficção a uma meio técnico, pouco maleável como o historicismo rígido?

Desde o primeiro "conto" do livro (não entendam mal, é um romance) se guarda uma tentativa de encontro sob a luz da miscigenação que se descobria possível e era, como é hoje, interrompida por ordens hegemônicas. Um "diário histórico" inaugura-se a partir desse conto: cheiro de matas, comidas específicas, rios, rituais religiosos.

Um caderno temporal ganha vida no segundo capítulo, em que a história avança mais de 500 anos e estamos no tempo presente, descobrindo que o primeiro conto é -na verdade- uma escrita do protagonista real do romance. Risério é um dos autores que pegam o que muitos atribuem ao romance pós-moderno e deixa claro que, além de todas descrições sensoriais, o livro também dialoga com o fazer literário: "meta literatura". "Que você é esse?" é composto por dois eixos que se entrecruzarão até o fim do romance alternando entre a história da formação brasileira, nunca sob o ponto de vista pragmático, e as pessoas que vivem ao redor do protagonista, que podem ser rotuladas com a imprecisa alcunha de "intelectuais". Em "Que você é esse?" o narrador escreve sobre um país numa carta de amor disposta às maiores expressões de beleza que residem atrás da totalitária opressão histórica.

Daniel Kertzman, o protagonista, enumera sua história e a relaciona com várias passagens de formação importante para o país nos últimos 50 anos. As distâncias entre os eixos temporais apresentam sua diferenças óbvias, entretanto o que mais chama a atenção é o desejo simbólico que as une já que são, teoricamente, tão divergentes. A história se repete, a seu modo. Quando o enredo segue alguma cronologia, é narrado como as sociedades judaicas se organizaram no Brasil, especialmente na Bahia. No presente em que se escreve, as personagens encontram-se transitando e mudando de posições políticas e afinidades artísticas (mutáveis como a figura do camaleão que inicia e encerra o livro). É uma época em que não é possível ficar restrito a um nicho identitário e a abertura a outras perspectivas é um movimento constante, como ocorreu em toda formação geoespacial brasileira. A dor dilacerante dessas mudanças já foi (e continua sendo) insistentemente reclamada, mas esse é o mesmo processo que fez com que, por exemplo, judeus de classe-médias aderissem ao candomblé.

Depravação aristocrata
Se a ponta da formação histórica do Brasil é narrada com altas doses de violência e erotismo que são raros em livros históricos tradicionais, a história contemporânea humoriza -não sem certa tristeza e ironia- a depravação de nossa elite política e empresarial (que se mostram, praticamente, a mesma) tal qual a aristocracia pequeno-burguesa de outra época. O que chega ao leitor é a ressurreição de nossos antepassados fantasiados em momentos-chaves, seja no presente mais recente ou na luta armada contra a ditadura militar. A leitura que se segue é a marcada em carne-viva sobre os efeitos coloniais e pós-coloniais, em um lapso temporal que diz justamente sobre as próximas eleições, sobre os movimentos urbanos (ONGs, manifestações etc.) e a capacidade de absorção de diversas frentes. Reivindicações e reinvenções são liberdades capazes de refazer a história, em que princípios antigos se mostram necessários para abolir a moral vigente sobre a qual os privilégios se perpetuam.

O protagonista passa pela infância, fase adulta e chega à chamada terceira-idade com mais vigor do que nunca. Isso porque ele soube que o camaleonismo é a herança principal do brasileiro, a qual traz todas as vantagens e desvantagens em um país no qual o privilégio de classe define a distribuição de cargos econômicos e de posições sociais.

Como numa antologia sobre  a história de nosso país em uma perspectiva individual, as transgressões e manchas de violência (física e econômica, já que estão quase sempre casadas) organizam a construção desordenada do Brasil. Assim, torna-se nítida a claridade desses pontos em comum, que horizontalizam a visão hegemônica sobre o país em desespero individuais e grupais, mas encarnando esperança e possibilidades utópicas. Dessa maneira, a conscientização passa pela narrativa comum - que é, ela mesma e sem truques mirabolantes, a heresia que sempre foi inerente à população brasileira. Mas, mesmo nesses casos, a desorganização é um fator latente- o que permite às campanhas eleitorais, pormenorizadas devido a presença de Risério na campanha a favor de Dilma, fragmentarem a sociedade sob o discurso da multiplicidade, tornando tudo moeda de troca para voto e garantias de favores.

Há uma crítica feita ao livro sobre os "exageros eróticos" em ambos os tempos narrativos, mas "Que você é esse?" é um romance de exageros que mostram a distinção de cada momento e a forma como o fator "desejo" governa o ser humano há séculos. Assumir isso como um "risco" ou "desvio narrativo" é retirar do livro sua personalidade mais forte- além de sua boa prosa. A intenção do autor não é "retirar as personagens femininas das rédeas do patriarcado", mas lidar com o desejo como fator alternativo às instabilidades políticas e ideológicas. Ver "pornografia narrativa" como exemplo contrário de sutileza é sobrevalorizar o ato sexual, como se apenas outros tópicos fossem válidos de repetição. O livro seria reacionário se recusasse o barroquismo apenas em uma de suas vertentes.

Portanto, a narrativa não se torna totalitária nem busca abarcar toda uma espécie - mas esculpe uma linhagem de "espírito coletivo" que atravessa a formação sociocultural brasileira. Logo, a necessidade do romance abordar as mais distintas regiões brasileiras e narrar episódios poucos contados pelo historicismo hegemônico (a libertação da Bahia, por exemplo).

Para não se limitar a redução do que a ficção pode ou não falar, Risério optou por formas de reapresentar a eclosão multiétnica que atravessou a formação cultural brasileira, para reivindicar o pluralismo que é ameaçado sempre por forças contrárias aos consensos coletivos- seja por interesses financeiros, políticos ou religiosos. Em relação aos personagens-autores que se esforçam para criar uma obra "de valor" no Brasil contemporâneo: são cidadãos que entendem como questão política e urbana são indissociáveis para auto-organizar a sociedade. Ao mesmo tempo, isso não é opção estética- mas uma forma de compreender o que, erroneamente, é atribuído como "brasileirismo" enquanto fenômeno sempre camaleônico. Também se destaca o fato de Daniel Kertzman dar enfase à literatura na parte final de sua vida, como modo de preparação de um futuro que já acontece.

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